Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 novembro, 2012

O meu nome fantástico e secreto que só os anjos do vento reconhecem


Hoje é um desses dias. Não me reconheço em grande parte dos que me cercam. Sou diferente. Pareço idêntica, tenho duas pernas, dois braços, na aparência falo a mesma língua, aparentemente percebo o que querem, o que fazem.

Mas só eu sei como me sinto tão distante. Andam às voltas, não saem do mesmo sítio apesar de andarem sempre à pressa, dizem coisas que não interessam ou que não fazem sentido, interessam-se muito por coisas efémeras e irrelevantes, interessam-se mais por coisas do que pelos outros a quem não ouvem nem conhecem. Aquietam-se quando se deveriam revoltar, acatam quando deveriam desobedecer, vergam-se quando se deveriam erguer.

Parecendo igual, em dias assim sinto-me uma estranha.

Em dias assim, vendo que não consigo mudar o mundo, busco a noite. Entro pela noite dentro, procuro as águas, mergulho nas ondas, uma e outra e outra e eu submersa, tentando purificar-me, libertar-me.

Então, quando o silêncio invade o meu peito, por momentos ouço o meu nome, o meu nome soprado, cantado, sussurrado.

Não estranho. Sei quem assim chama por mim, quem assim tenta embalar-me. São os anjos, os anjos de grandes asas, os que habitam os meus grandes espaços. E fico tranquila, os anjos sabem o meu nome, reconhecem-me. Talvez apareçam para me tranquilizar, talvez saibam que, em dias assim, me sinto melhor sozinha no meio da noite, debaixo das águas tingidas com o negrume da noite, tocada pelo seu sopro mágico, do que no meio de gente que me é tão estranha, tão estranha, meu deus. 

Em dias como o de hoje não quero voltar aos dias áridos cheios de gente assim, tenho medo de me ver cercada por quem não saiba sequer o meu nome, medo que os meus anjos me abandonem. Oh deus.



[Abaixo da gaivota solitária, um belo poema de Sophia e, logo a seguir, a música de Froberger para nos tirar daqui.]



Em Cacilhas, gaivota caminha pensativamente pela beira do cais,
acompanhada apenas pelo seu próprio reflexo  



                                    No mar passa de onda em onda repetido
                                    o meu nome fantástico e secreto
                                    que só os anjos do vento reconhecem
                                    quando os encontro e perco de repente


[Poema de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'No tempo dividido']

:.:.:


DISTÂNCIA

Distância
É a estrada longa que nos resta
Quando o tempo se estende
Para além da esperança
E os rostos se diluem em névoa.
Procuramos
Estranhos recantos
Lugares de Primavera
No peso agreste da memória.



SILÊNCIOS

Encontrar o silêncio
quando os dias se rasgam
de gritos ácidos
e os ouvidos se enchem
de bandos loucos de palavras vãs.
Encontrar o silêncio
onde a Paz se acolhe
e o vazio se enche
de sombras brancas.
Silêncio,
quando a angústia se esvai
e o olhar voa
como chama matutina.
Encontrar o Silêncio e morar nele
até que nos encontremos
e um sorriso se abra em nós.


GUNDULA STEGLITZ

(em comentário abaixo)

.:.:.



PARA TI

Caso não saibas
minha querida Tá
hoje
escreveste um poema (e ai de quem disser que não)

esvaziaste de tédio a tua alma
organizaste desencantos espaços e memórias
e retomada a tua arrumação
cobriste a tristeza com asas de anjo...

(não ouvi nem discursos nem mentiras
recuso...não quero...não quis)
e quanto a ti
gosto bem mais de sentir zangada... furiosa... mas feliz


Era uma Vez

(em comentário abaixo)

9 comentários:

  1. Compreendo perfeitamente que depois da entrevista lamentável do PPC a que assistiu , fechando cada vez mais as nossas perspectivas de futuro se sinta
    mansamente desesperada e procure distâncias e silêncios.
    Mais um texto belíssimo embora carregado de cansaço e de uma certa amargura procurando refúgio junto de um anjo salvador.
    Todos nos passamos por esses momentos embora não o saibamos expressar tão bem!

    DISTÂNCIA

    Distância
    É a estrada longa que nos resta
    Quando o tempo se estende
    Para além da esperança
    E os rostos se diluem em névoa.
    Procuramos
    Estranhos recantos
    Lugares de Primavera
    No peso agreste da memória.



    SILÊNCIOS



    Encontrar o silêncio
    quando os dias se rasgam
    de gritos ácidos
    e os ouvidos se enchem
    de bandos loucos de palavras vãs.
    Encontrar o silêncio
    onde a Paz se acolhe
    e o vazio se enche
    de sombras brancas.
    Silêncio,
    quando a angústia se esvai
    e o olhar voa
    como chama matutina.
    Encontrar o Silêncio e morar nele
    até que nos encontremos
    e um sorriso se abra em nós.


    GUNDULA STEGLITZ



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    1. Caro Joaquim Castilho,

      Agora sim. Agora sinto-me com vontade de levar os poemas de Gundula Steglitz para o local onde são bem visíveis e onde suas as palavras dialogam com os de Sophia.

      Já lá os coloquei e que bem que ficam. Que belas palavras, que bem ela percebe as minhas palavras. Vai ver é um dos anjos que sabe o meu nome, que chama por mim quando saio por aí a voar.

      Muito obrigada.

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  2. PARA TI

    Caso não saibas
    minha querida Tá
    hoje
    escreveste um poema(e ai de quem disser que não)

    esvaziaste de tédio a tua alma
    organizaste desencantos espaços e memórias
    e retomada a tua arrumação
    cobriste a tristeza com asas de anjo...

    (não ouvi nem discursos nem mentiras
    recuso...não quero...não quis)
    e quanto a ti
    gosto bem mais de sentir zangada... furiosa... mas feliz

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    1. Querida Era uma Vez,

      Uma vez mais as suas palavras vêm dar-me o braço. Leio-as e fico tão feliz, revejo-me tanto nas suas palavras.

      Claro que também já estão lá em cima.

      Hoje teve companhia. Gundula Steglitz, uma misteriosa figura, escreve poemas também com a facilidade e leveza de quem tem a alma cheia de poesia. Hoje, Erinha, as suas palavras juntam-se às de Sophia e, também, às de Gundula.

      Muito obrigada. Fico muito feliz com isto. Fico comovida.

      Um beijinho, Erinha!

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  3. Era uma Vez e Joaquim Castilho: hoje não vou escrever nada aqui para que, quem me visite, possa ver bem os vossos poemas. Obrigada aos dois!

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  4. JOAQUIM CASTILHO30 novembro, 2012

    Em nome da Gundula Steglitz, agradeço a distinção ao ter colocado os seus poemas junto da Sophia, poetisa de sua eleição!
    Obrigado

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    1. Olá Joaquim Castilho,

      As palavras de Gundula, as que conheço, são palavras que trazem em si o silêncio e a luz. Também por isso estão muito bem ao pé de Sophia.

      Obrigada eu. A sério.

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  5. Não sou nada.
    Nunca serei nada.
    Não posso querer ser nada.
    À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

    É apenas o início de um grande poema do grande Fernando Pessoa, que gostaria de lembrar aqui no dia do aniversário da sua morte há precisamente 77 anos.

    O Ferrrnando (como diz a Bethânia, e que bem ela o diz!) adorava Lisboa, e aposto que muitas vezes esteve no cais das colunas a olhar para o Ginjal...

    Quem sabe se ainda não olha, e vê a nossa Jeitinho a fotografar as 'panteras tristes', ele que também fazia poemas aos gatos!

    Gato que brincas na rua...

    Bj

    Antonieta

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    1. Olá Antonieta,

      Fez muito bem em assinalar a memória da data. Eu sou péssima para datas, para datas de tudo, aniversários, 'dias de', tudo. Sei a data de aniversário do núcleo mais restrito e, mesmo assim, sabendo que sou despassarada para datas, tomam o cuidado de me ir alertando...

      Acho que escolheu muito bem o poema com que começou o seu texto. Pela parte que me toca, diria que é um poema que fica muito bem aqui no Ginjal, o local onde a sua autora mostra bem que tem um lado incontornavelmente sonhador e onde todos os sonhadores são muito bem vindos.

      Muito obrigada, Antonieta, pelo seu cuidado em marcar a data.

      Um beijinho!

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