Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

11 novembro, 2012

Momentos antes de ruírem, o anjo desolado pensa


Voam muito alto os anjos. Não os vejo. Transparentes e longínquos, apenas sinto o seu sopro morno, o silêncio do seu longo olhar.

As casas estão vazias, as paredes gastas e as salas frias guardam as almas distantes de quem, em tempos, por aqui viveu. Os vivos agora já não se aventuram dentro de tão arruinado casario. Habitadas por gatos vadios e ariscas gaivotas, estas casas já não acolhem o calor dos corpos, os sorrisos da vida. 

Crianças, amantes, mães e filhos, irmãos, amigos passam ao largo. Passam rente ao rio, olham as distantes fronteiras. Mas não entram. Não se deve despertar quem espera, em silêncio, o sossego da solidão e do desamparo. Não entro também.

E se, ao passar, ouço, vindo de lá, um ténue murmúrio ou sinto uma suave aragem, sei que é um dos desolados anjos que por lá esvoaça, talvez amorosamente enlaçando algum dos mais tristes espíritos que por lá se demora.



[Abaixo do azul do Ginjal, um poema de Carlos de Oliveira e, logo a seguir, para ver se alegro os anjos e as casas desamparadas, abro a semana que vou dedicar a Jean-Philippe Rameau, com Les Indes Galandes, uma festa de cor e música]



O casario do Ginjal rente a um Tejo muito azul
(a Ponte Vasco da Gama unindo o céu e o rio)



                                  Casas desidratadas
                                  no alto forno; e olhando-as
                                  momentos antes de ruírem,
                                  o anjo desolado
                                  pensa: entre detritos
                                  sem nenhum cerne ou água,
                                  como anunciar
                                  outra vez o milagre das salas;
                                  dos quartos; crescendo cisco
                                  a cisco, filho a filho?
                                  as máquinas estranhas,
                                  os motores com sede, nem sequer
                                  beberam o espírito das minhas casas;
                                  evaporaram-no apenas.



[Poema IX de 'Descrição da Guerra em Guernica' de Carlos de Oliveira in Antologia Pessoal da Pesia Portuguesa de Eugénio de Andrade]

*


O que é uma ruína?
Pode ser o resto de uma casa,
O resto de um amor, de uma paixão.
Pode ser um pobre velho que se fina,
Pode ser um pássaro sem asa,
Pode ser o fim de uma ilusão.


['Ruína' da Leitora Maria num comentário aqui abaixo]


*


...também podes ser tu
e o teu olhar vazio de projectos
e a decadência dos afectos
a fazer o seu caminho
brandamente
a dar cabo da gente
(um luxo descabido
para quem não vive eternamente)

na ruína
já não há carinho
apenas pedras
e galhos desgarrados
tentativas
restos
ausência de desejo
musgo a nascer teimosamente nos telhados


e de súbito (imagine-se)
no meio do nada
um trevo
uma luz
um beijo...



[Poema da Leitora Era uma Vez num comentário aqui abaixo]


8 comentários:

  1. bonitas fotografias, o casario rente ao rio, quem viverá por ali? e lisboa em frente!!!

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    1. Caro Patrício Branco,

      Na maior parte das casas não vive ninguém. De vez em quando aparecem buracos na parede e dá ideia que alguém vai abrigar-se por lá. Há pouco mais de um mês morreu lá um jovem que tinha ido à pesca com amigos e que entraram, penso que para fazerem a comida e uma parede derrocou, deixando-o soterrado. Penso que deve ser a autarquia que vai fechando esses buracos que permitem a entrada nas ruínas. Mais à frente há umas famílias de aspecto muito pobre que vivem mesmo lá.

      É um contraste incrível. De um lado do rio, Lisboa belíssima. A meio o rio, com os veleiros, os grandes navios. e aqui no Ginjal, uma longa fiada de armazéns, restaurantes antes muito bons, tudo degradado.

      No entanto, há num recanto, dois bons restaurantes sempre muito frequentados: o Atira-te ao Rio e o Ponto Final.

      É um local muito especial, este.

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  2. É triste uma casa em ruínas, à espera de cair, escondendo as sombras dos que lá viveram.
    Parece que não vem a propósito, mas quando vejo fotos, da casa de Aristides Sousa Mendes, em Cabanas de Viriato, penso nas dezenas ( ou centenas) de judeus que ali encontraram abrigo e ajuda. Quantas sombras vaguearão naquelas ruínas?
    A sombra desse grande homem, deve sentir tanta dor!
    Gostei muito do texto e do poema.
    Mary

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    1. Pois é Mary, as ruínas são tristes. Quando por aqui passo, penso que isto um dia ainda desaba tudo, causando uma desgraça. Como verá na minha resposta acima, ainda há pouco tempo houve mesmo uma desgraça. Aliás, nas paredes há cartazes a dizerem que há risco de derrocada.

      Mas antes aquilo eram armazéns de pescado, uma zona com grande actividade o que, afinal, é mais do que normal num local junto ao rio, perto do mar. Anormal é um país como o nosso ter tão poucas pescas.

      Mas aqui não há apenas armazéns, há casas de habitação que deviam ser boas. Todo este casario guarda as lembranças desses tempos, guarda o espírito dos que ali foram felizes.

      E tem razão, a casa de Aristides Sousa Mendes, quantas memórias, quantas, deve guardar. Quantas vidas, quantos medos, quantas esperanças. Eu gosto muito de casas antigas. Gosto de imaginar os que lá viveram.

      Obrigada, Mary,

      Um beijinho.

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  3. Ainda voltei, para lhe deixar uma coisinha.
    Ruína
    O que é uma ruína?
    Pode ser o resto de uma casa,
    O resto de um amor, de uma paixão.
    Pode ser um pobre velho que se fina,
    Pode ser um pássaro sem asa,
    Pode ser o fim de uma ilusão.

    Mary

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    1. Mary,

      Muito obrigada. Já coloquei lá em cima, junto ao poema de Carlos de Oliveira, no local destinado à poesia.

      Agradeço.

      Um abraço, Mary.

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  4. ...também podes ser tu
    e o teu olhar vazio de projectos
    e a decadência dos afectos
    a fazer o seu caminho
    brandamente
    a dar cabo da gente
    (um luxo descabido
    para quem não vive eternamente)

    na ruína
    já não há carinho
    apenas pedras
    e galhos desgarrados
    tentativas
    restos
    ausência de desejo
    musgo a nascer teimosamente nos telhados


    e de súbito(imagine-se)
    no meio do nada
    um trevo
    uma luz
    um beijo...

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    1. Erinha, olá,

      Aqui há dias, não sei se viu, um(a) leitor(a), ao ver como das palavras nascem palavras, disse que isto aqui é um lugar de criatividade. Fico muito contente por isso. O seu poema já está lá em cima, bem à vista, e foi juntar-se ao de Carlos de Oliveira e ao da Mary.

      Muito obrigada.

      Um abraço!

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