Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

21 novembro, 2012

E vêm chorar em mim o coração traído, a música perdida em distracções urgentes, umas palavras que ninguém falou.


Os dedos sobre o teclado, os olhos semicerrados, as palavras descendo sozinhas, pingos de cera, mornos, e a chama ardendo devagar, ou a límpida chuva escorrendo na janela, ou as lágrimas de quem me lê. A solidão que gera a solidão. A melancolia que é uma tristeza às vezes doce, outras uma teia que envolve devagarinho. E as palavras escorrendo, devagar, sozinhas. Não são minhas. Não. São de quem as lê. São palavras que contam a história de quem está aí, mãos talvez no regaço, mãos acariciando um gato que não vejo, mãos que imaginam como é macia a penugem de um pássaro colorido que se vê da janela (aí onde agora é primavera e onde os pássaros são tão maravilhosamente festivos). Ou mãos talvez também pousadas sobre o teclado. As minhas mãos e as vossas, juntas. As minhas que escrevem, as vossas que recebem o que escrevo. O calor das minhas palavras junto ao calor do vosso olhar. E eu sinto que o vosso calor é doce, que o vosso olhar é doce, tão cúmplice.

De quem são, pois, estas palavras que vão aparecendo escritas, e eu sem as ver, nascendo sozinhas vindas do meu coração, procurando o vosso olhar? São minhas ou vossas? 

São vossas. Tomem-nas. As minhas palavras são um abraço apertado a todos quantos me lêem. Obrigada.



[Abaixo do homem que olha o mundo de frente, há um belo poema de Jorge de Sena. Logo a seguir há uma música muito bela. Talvez seja boa ideia receberem o meu abraço e lerem o poema ao som do Te Deum de Purcell mas, claro, é uma opção vossa]


No Ginjal, de frente para Lisboa




                              Por que entristeço ao ler o que de meus
                              versos escrevem, se não é de mim
                              que escrevem?

                              Será que chora em mim o que meus versos foram
                              antes de ser meus?
                              Por que pergunto, se já sei por quê?

                              Escuto longamente, leio, espero,
                              e o poema é voz de toda a gente, todos eles, que,
                              não se tendo ouvido, não a sabem sua.
                              E vêm chorar em mim o coração traído,
                              a música perdida em distracções urgentes,
                              umas palavras que ninguém falou.

                              Não entristeço, pois. Apenas sou pergunta,
                              e, sendo eu, me esqueço ao perguntar.



['Tendo lido uma carta acerca de um seu livro de poemas, que oferecera' de Jorge de Sena in 'Antologia Poética']


4 comentários:

  1. JOAQUIM CASTILHO22 novembro, 2012

    OS SEUS TEXTOS MANSOS

    As palavras
    derramadas,
    imperceptíveis,
    o som
    a música
    decantada
    o ondulado harmónico,
    de uma emoção luminosa
    acontecendo.

    GUNDULA STEGLITZ

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    1. Esse poema, uma vez mais, desliza sobre as minhas palavras como uma segunda pele. Andei à procura de livros dessa poetisa e não descobri.

      Gosto muito.

      Muito obrigada.

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  2. Amiga,
    Obrigada pelas suas palavras, são sempre uma réstea de Sol no horizonte de quem as lê, tanto o Amor que nelas deposita.
    Recebo-as como um abraço, que retribuo.
    Um beijinho grande.
    MCP

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    1. Olá MCP,

      Escrevi-as também a pensar em si. Aliás, como certamente reparou usurpei uma frase sua que achei muito bonita e muito sentida, 'solidão gera solidão'. Agradeço a sua companhia.

      Um abraço com amizade, MCP!

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