Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 outubro, 2012

Perguntaram-me da terra da utopia mas ao longe só vi uma gaivota.


Agora que não sabemos para onde vamos, que sentimos que nos empurram para o temível abismo, diz-me: onde estávamos nós naquela altura em que pensávamos que éramos felizes?

Nesta escuridão medonha, num fosso sem contornos, sem fundo, sem fim nem princípio, pejado de monstros esfaimados, diz-me: onde estás que não me dás a mão, que não me amparas? Diz-me, por favor. 

Pergunto, pergunto, e já é quase só um murmúrio, mas não me respondes. Talvez nem me ouças. A verdade é que não sei de ti, não sei de todos os que comigo desenhavam sonhos, embalavam sorrisos, construiam futuros.

Onde estão todos? Não podem já ter sido todos devorados... Ou foram? Que medo, que medo, que medo, que solidão.

As crianças já quase não nascem, os jovens fogem da casa dos pais, os velhos morrem sozinhos. Que medo. O que é isto?

Tudo aquilo com que sonhávamos era nada? Era uma apenas uma inocente utopia? Era?

Olho o horizonte, procuro vestígios dos tempos felizes de outrora, fiapos de sonhos, qualquer coisa. Nada. Nada. Apenas o vazio, o espanto assombrado do medo, o horrível nada. 

E depois, ao longe, perdida no meio do azul, quase flutuando sobre as águas, uma gaivota. Olhar límpido e honrado, uma gaivota resiste. Forte como as águas, bela como o imenso azul.




[Sob a gaivota perdida no azul, mais um belo poema de Manuel Alegre e, logo abaixo, o lamento da ninfa tal como o ouviu Monteverdi]



Gaivota sobre o Tejo



                                        Perguntaram-me da terra da utopia
                                        mas ao longe só vi uma gaivota.
                                        Da terra da utopia eu não sabia
                                        nem do mar nem do sítio nem da rota
                                        talvez não fosse mais que um sonho que ninguém sonhava
                                        um soluço de Deus um cheiro a maresia
                                        e ao longe uma gaivota que pairava
                                        sobre um ponto no azul sobre utopia.


                                        ['Cais das colunas' de Manuel Alegre in 'Nada está escrito']

*


Do mar 
regressa a traineira
traz tão pouca pescaria...

e à hora certa as gaivotas
em sedenta procissão
(cantarolando o pregão) 
ainda vão acreditando
no peixe de cada dia

e nós
gente viúva
pés cansados mãos atadas
sussurramos "acordai"
ao novo "vento que passa"
confusos neste lugar
onde é pecado sonhar
com a palavra utopia

...e de novo a melodia
" e o vento cala a desgraça" e "o vento cala a desgraça"...



[Poema da autoria da Leitora Era uma Vez, a quem agradeço, no comentário abaixo]


12 comentários:

  1. Ao contrário do nome do livro: "Nada está escrito", aqui está tudo escrito. No texto, estão todos os nossos medos, a mágoa, aquilo que tememos que venha a acontecer. Mas há a gaivota que faz barulho e bate as asas. No poema, volta a gaivota, dá-nos um pouquinho de utopia, uma leve esperança.
    Mary

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    1. Vivemos tempos de medo, caminhamos por caminhos escuros de que não conhecemos as margens, o destino, e somos guiados por gente sem vocação para nos guiar. São tempos perigosos.

      temo pelo meu futuro. Temo pelo futuro dos meus filhos. Temo pelo futuro dos meus netos.

      Forço-me a ter esperança. Claro que temos que ter esperança. Mas há dias em que a esperança é tão difícil...

      Um beijinho, Mary.

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  2. É uma grande verdade! Interrogamo-nos sobre o que aconteceu aos sonhos que comandaram a nossa vida, às promessas que alimentaram
    a nossa existência, aos valores que nos transmitiram, e não se ouve nada, ninguém responde, nem o eco das nossas dúvidas, nada, parece que fugiram todos e que nos abandonaram no deserto, contudo ainda ouvimos, lá no fundo do nosso ser, a voz da esperança a respirar muito baixinho, e a resistir, a resistir como a gaivota! Vamos ter esperança que todos virão ao nosso encontro para nos dar a mão.
    Gostei muito do que escreveu, pois deu para reflectir no nosso passado, presente e futuro!...
    Um grande beijinho
    ME

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    1. Eu era nova e o mundo parecia abrir-se. A esperança crescia junto a nós como flores num campo fértil. Eu tinha os meus filhos pequenos e achava que eles iam ter um futuro melhor que o meu.

      Agora vejo o mundo a descair, a andar para trás, vejo os destinos de tanta gente entregues a quem não tem competência para cuidar de nós e receio pelo futuro. E isso revolta-me muito. Como foi isto possível...?

      Ainda hoje estive com os meus meninos, amanhã estarei outra vez e ver os pequeninos tão alegres, enche-me de preocupação. Mas pode ser que isto se resolva e que todos voltemos a ter razão para ter esperança.

      Um beijinho, Maria Eduardo.

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  3. Do mar
    regressa a traineira
    traz tão pouca pescaria...

    e à hora certa as gaivotas
    em sedenta procissão
    (cantarolando o pregão)
    ainda vão acreditando
    no peixe de cada dia

    e nós
    gente viúva
    pés cansados mãos atadas
    sussurramos "acordai"
    ao novo "vento que passa"
    confusos neste lugar
    onde é pecado sonhar
    com a palavra utopia

    ...e de novo a melodia
    " e o vento cala a desgraça" e "o vento cala a desgraça"...

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    1. E o vento cala a desgraça, e o vento cala a desgraça.

      E como chove hoje, tantas, tantas lágrimas.

      'Ai aguenta, aguenta' diz o rico banqueiro, enquanto as filas de desempregados crescem de gente sem esperança. E as casas de desempregados que perderam direito ao subsídio de desemprego são cada vez mais, dizem as organizações que ajudam os novos pobres.

      Gostei muito do seu poema, já está no texto, ao pé do de Manuel Alegre.

      Muito obrigada, Erinha.

      Um beijinho!

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  4. Que lindo e triste, Amiga!
    Beijinho
    Mary

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    1. Mary,

      Embora eu seja de afastar tristezas, há momentos em que temos que exorcizar as tristezas.

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  5. De facto este é um espaço de criatividade.
    Acho que Manuel Alegre havia de gostar de passar por aqui e ver o que "provocou"
    Parabéns.

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    1. V.L.,

      Muito obrigada. Fico sensibilizada com as suas palavras. E se soubesse como fico contente quando vejo que das palavras nascem palavras.

      As palavras da Leitora 'Era uma Vez' sempre tão espontâneas soam bem ao lado das palavras de Manuel Alegre, não é?

      Agradeço a sua visita e as suas palavras.

      Um bom domingo!

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  6. estrofe que talvez pudesse ser incluida nos lusiadas apesar de estar na 1a pessoa, e é curioso como somos sensiveis às coisas do mar, as gaivotas, a maresia, a rota.

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    1. Caro Patrício Branco,

      Que bom ter a sua visita e receber as suas palavras.

      A água, seja um espelho tranquilo, seja um mar revolto, transmite sempre uma imagem de beleza, ora de serenidade, ora de bravura.

      E o cheiro da maresia, um cheiro que traz as cores do fundo do mar, e as gaivotas, tão livres, e a rota que traça caminhos invisíveis no mar... tem razão, é sempre algo que nos toca, que nos move.

      A poesia de Manuel Alegre tem uma musicalidade, músculos, asas. Tem resistência e tem esperança.

      Obrigada, Caro Patrício Branco. desejo-lhe um bom domingo!

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