Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

16 outubro, 2012

Irás descendo a um poço, uma vertigem


Sobes, Poeta, ao ponto mais alto de ti. 

Aí o ar é fresco, quase rarefeito o ar, tão belo o horizonte que abarca, tão bela a paisagem que envolve, tão insignificante o pequeno mundo, tão próximas as nuvens. 

Olhas em volta e tocas o céu. Um frémito te percorre, Poeta. Ou é do ar azul que respiras ou é das palavras que voam à tua volta. Olhas o vasto espaço e dizes vento, ar, longe, mar, asa, transparência, luz, água - e as palavras vão-se juntando sozinhas.

Aqui onde estás, Poeta, este ponto, o vértice do mundo, é a Boca do Vento.

Cá em baixo corre o rio e parece uma pintura infantil, e os barcos parecem pequenos, cheios de pequenas figurinhas. Enches o peito de ar, queres estar sempre aqui, no meio de um céu generoso, dentro da Boca do Vento.

Mas depois, Poeta, vem aquela força que te impele para o centro de ti próprio e queres mergulhar, procurar outras palavras, palavras que tenham a sombra por entre as sílabas, que tenham dentro de si escuridão, silêncio, ou uivos, ou dor, ou finitude, ou tristeza, ou solidão

E, então, abeiras-te do abismo, e as palavras começam a misturar-se, um remoinho à tua volta, e são agora desejo, sangue, infinitos beijos, corpo, mãos, sexo, fim, princípio, ciúme, paixão, traição.

E, quando dás por ti, já uma vertigem fatal te puxou para o poço mais escuro, mais fundo, mais insondável.

Em busca da palavra mais perfeita, Poeta, mergulhas, perdido, rendido à fatalidade da poesia.

Quando, por fim, chegas ao fundo não abres os olhos, Poeta, achas que os perdeste na queda. Não vês, portanto, a fantástica luz que subitamente o ilumina.



[Abaixo da imagem do homem que se lançou no espaço, poderão ver mais um poema de José Bento, um Poeta 'cá muito de casa', é já o 14º poema aqui no Ginjal. E, logo a seguir, uma nova interpretação de uma sonata de Franz Biber.]



Buddy Jumping na Boca do Vento sobre o Ginjal



                                         Os poemas que escrevas,
                                         ainda que muitos, são
                                         um só, inacabável,
                                         interceptado um dia:

                                         sufocante abertura
                                         por onde irás descendo
                                         a um poço, uma vertigem,
                                         com uma única saída

                                         que, enfim, vislumbrarás
                                         quando já não tiveres olhos.


                                         [Poema nº5 de José Bento in Sítios]

2 comentários:

  1. Olá,
    Gostei muito deste texto e do poema de José Bento. A luz que subitamente o ilumina e a vertigem com uma única saída que só a vislumbrará quando já não tiver olhos...
    Será a vida eterna eminente?
    Obrigada por este momento de reflexão,diferente de todos os outros.
    Um beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Maria Eduardo,

      O que sei é que quanto mais anos temos, quando mais perto estamos do abismo para o qual caminhamos, melhor vemos. Chegaremos ao fundo mais fundo do poço talvez sem olhos ou sem vontade de os abrirmos, mas se os abríssemos veríamos tudo bem mais nítido. É a sabedoria e a tolerância que vem com a idade. E depois não dizem que quando se transpõe a porta do abismo se vê uma luz fantástica?

      Eu saber, não sei e não faço questão de saber. Quanto mais tarde o descobrir melhor mas é confortável saber que é um abismo cheio de luz.

      Conversa mais estranha e triste, não é...? Não gosto.

      Por isso, vou mudar de registo e desejar-lhe uma vida feliz, longa e luminosa! Isso é que é!

      Eliminar