Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 outubro, 2012

e eu a pensar ainda uma palavra tua e eu serei salva


Ainda sentia o cheiro da tua pele em mim, quando reparei na porta aberta. Tinhas ido. Chamei-te, queria, ao menos, despedir-me, pedir-te um beijo, um adeus, a promessa de uma carta. Mas já não me ouviste. 

Saí, então, fui pela rua, segui o teu rasto, fui pelo teu cheiro, pela lembrança das tuas palavras. Mas não te encontrei.

Segui os caminhos que eram nossos, fui pela beira do rio, e já era fim de dia, e eu sem saber de ti. Segui o silêncio das casas vazias, segui a corrente do rio, procurei que passasse um barco ou, até, uma gaivota. Mas não passava nem um barco, nem uma gaivota e tudo era silêncio. Nem um sinal de ti.

Caminhei então em direcção às águas, entrei pelo rio adentro, e pedi baixinho, diz uma palavra, uma que seja, não te vás sem uma palavra, não deixes que eu pense que já nada fazia sentido. 

Meu Deus, será que é isso, já nada fazia sentido?



[Abaixo do belo poema de Alice Vieira, temos ainda Corelli e, uma vez mais, vos sugiro que desarrumem a ordem dos factores: talvez o texto e o poema soem melhor ao som de Corelli.]


Fim de tarde no Ginjal, bem rente ao Tejo



                         a porta entreaberta a prolongar
                         os teus passos       os castanheiros      a cidade em chamas
 
                         a minha voz a prometer-te uma carta
                         (prometo sempre cartas a quem se perde
                         entre o meu corpo e os patamares das escadas
                         de países desconhecidos)

                          mas tu já não ouviste ou então
                          tudo tinha deixado de fazer sentido

                          e eu a pensar ainda
                          uma palavra tua e eu serei salva



[Poema 5 de 'Cinco breves momentos de Maio' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água']

4 comentários:

  1. JOAQUIM CASTILHO04 outubro, 2012

    Belíssimo o seu texto , como sempre no seu belo e doce "jeito manso". Também belíssimo o poema de Alice Vieira que, apesar de já ter publicado dois luminosos livros de poemas, continua a não ser considerada também como poetisa (recuso-me a dizer poeta). Será por não ser hermética e pelo facto do seu lirismo adulto não estar na moda literária do momento? Mistério !!!

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    1. Caro Joaquim Castilho,

      Muito obrigada. Gosto muito de escrever e fico muito contente quando sinto que as minhas palavras são agradáveis de ler.

      Gosto muita da Alice Vieira. Este poema foi o 11º que aqui coloquei. Também não percebo porque não é mais referida e melhor reconhecida. Acho-a uma das grandes poetas da actualidade. (E, como vê, eu sou o contrário de si: acho que ser-se poeta é uma coisa grande, independente do género, ou melhor, acima do género. Por isso, embora não me choque nada a palavra poetisa, quando eu me quero referir, uso a palavra poeta)

      Eu, como não sou de modas, escolho para aqui aqueles de quem gosto e não os que a intelectualidade recomenda.

      Uma vez mais obrigada e desejo-lhe um bom fim de semana.

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  2. neste livro por que é que há a perda do amado? houve traição?

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    1. Caro(a) Anónimo(a),

      Traição houve, certamente. Mas não lhe sei dizer qual o tipo de traição até porque também não sei qual o mais doloroso tipo de traição. Pode ter sido a morte que traíu a vida, podem ter sido os sentimentos que traíram a relação, pode ter sido o destino que traíu o que, num momento, era dado como certo.

      Acontece e geralmente é doloroso.

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