Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 outubro, 2012

E era além dessa margem que tu tinhas assento


Chove tanto hoje, tanto, ouço a chuva aqui tão perto de mim; e o vento, como o vento sopra molhado aqui ao meu lado.

Imagino como estará lá em baixo, rente ao rio. Imagino os canaviais, agitados, desalinhados. E as árvores, como estarão? Vergadas? E o rio? Imagino-o a correr negro, desvairado, arrastando árvores, canas, peixes arquejantes, trapos, restos de vida. Ah como são assustadoras as noites assim, cheias de ferozes desmandos.

E o som embravecido das águas a baterem como loucas nas rochas aqui nesta margem? E as gaivotas, ah as gaivotas, onde se abrigarão perante tamanha fúria? Nas conchas das ondas? Nos desvãos das janelas escancaradas? Coitadas. E os gatos? A esta hora devem andar assustados, olhos vazios, rastejando debaixo das ruínas. Pobres pequenos deuses, tão abandonados.

E tu, meu amor? Nesta noite tão escura, tão enlouquecida, onde andas? Procuras-me ainda? Percorres estes caminhos sem destino, ainda chamando por mim? 

Talvez seja tua a voz que me parece ouvir ao longe, talvez seja o meu nome que as ondas levam e que as chuvas deixam cair, ah que tristeza. 

Esperei por ti, sabes, esperei tanto, tanto. Mas não vinhas, o tempo passava e tu não vinhas, amor, e eu tinha medo da noite, do vento, da chuva, da loucura das gaivotas, das garras dos gatos transfigurados pelo medo. Subi, então, as escadas, aquelas escadas que não levam a lado algum, subi e, quando estava lá em cima e tu não vinhas, deixei-me ir, voei, o vento levou-me. 

Estou agora no regaço das nuvens, chorando por ti e por mim. Tanto desalento, meu amor, tanto, tanto.



[Abaixo das escadas que não levam a lado nenhum, poderão ler um belo poema de Vasco Graça Moura e, logo a seguir,  o som sublime das vozes interpretando um novo trecho de Monteverdi]



O romântico pequeno jardim do Ginjal




                                         e havia os canaviais em seu estouvamento
                                         agitava-os a brisa num ondular mais lento
                                         e às vezes desgrenhava-os um furioso vento
                                         e era além dessa margem que tu tinhas assento
                                         lá onde te buscava o meu contentamento.
                                         ia eu mesmo a chegar e foi nesse momento
                                         que a noite nos caiu. ficou o desalento.


                                         ['Allegretto' de Vasco Graça Moura in Poesia reunida]

4 comentários:

  1. Deixou-me sem palavras.
    Mary

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    1. Há palavras que nascem de mim sem eu perceber bem de onde vêm.

      Um abraço, Mary.

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  2. Lindo! Lindíssimo!...deixei-me levar nas ondas da sua sensibilidade e quando cheguei ao fim senti-me também embalada no regaço das nuvens, com a respiração suspensa, tentando consolá-la tal o seu desalento...e agarrá-la para não cair...
    Muito belo!
    Um grande beijinho e obrigada por estes bocadinhos tão emotivos.
    ME

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    1. Tem dias em que as palavras saem assim. Escrevo sem saber o que vai sair - a sério. Ponho-me a escrever sem pensar, os dedos parece que sabem o que vão escrever. Gosto muito quando estou assim, as palavras a sairem a grande velocidade e eu até surpreendida com o que se vai escrevendo.

      Muito obrigada pelas suas palavras, Maria Eduardo. Um beijinho.

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