Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 setembro, 2012

Não me importa o pão quando não o divido: farta mesa triste sem companhia


Que me interessa o que tinha, quando não te tinha?

Talvez a mesa fosse farta, não digo que não, talvez os livros já fossem a minha grande companhia, talvez os amigos me rodeassem com os seus sorrisos e amparos, talvez o rio já fosse tão azul e, mesmo, Lisboa já era, certamente, tão bela. 

Talvez os meus passos já me trouxessem até aqui, até onde a maresia perfuma o ar que respiramos, talvez eu já soubesse que os grandes espaços são a minha casa. 

Mas hoje penso que, enquanto sorria como se fosse feliz e enquanto caminhava como se os estes caminhos me bastassem, talvez eu já procurasse um sinal que tardava em vir, um sinal de ti.

Talvez, e tu sabes que é verdade, eu tivesse um ombro, um abraço, uma mão, um corpo que me visitava.

Mas não te tinha ainda a ti e, sem ti, tudo me era pouco. 

Mas um dia o acaso trouxe-te até mim. E nesse dia eu soube que era a ti que eu procurava, era de ti que eu sentia falta. 

Percorro agora os mesmos caminhos mas esses caminhos são percorridos por nós dois e eu agora sou eu e sou também uma parte de ti. E a isto talvez se chame amor.



[Abaixo do belo poema de amor de Maria do Rosário Pedreira, que pode ser visto no seu novo livro, poderemos ouvir uma gostosa música de Boccherini. Sei que tinha dito que ia sair dos compositores para os intérpretes mas a falta de ritmo com que tenho alimentado o Ginjal e Lisboa, pela qual me penitencio, leva-me a ceder a esta vontade que me deu hoje, a de ficar  com este compositor.]


Nesta primeira tarde de Outono no Ginjal, o Tejo muito azul, Lisboa coberta  por nuvens discretas



                                          Não me importa o pão quando não o divido:
                                          farta mesa triste sem companhia. Na tua
                                          ausência não há fome que me devore, e a
                                          gota de vinho na toalha é só mais um borrão
                                          num poema sozinho. Antes de ti nunca

                                          tive apetite pela vida, as costelas vincadas
                                          na camisa. Tantos cães escanzelados iguais
                                          a mim cumprindo a solidão das avenidas,
                                          e tão poucas as esquinas. Milagre mesmo

                                          foi teres parado numa para me alimentares.


[Poema de Maria do Rosário Pedreira in Poesia reunida,'A ideia do fim' - III, para o Manel]

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigada. A Maria do Rosário Pedreira tem a poesia nas veias. Gosto muito de ler a sua poesia. Gera em mim uma sensação de empatia.

      Um abraço.

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  2. Gostei da prosa, gostei da poesia.
    É tudo tão certo! Mais vale um bocadinho de pão e uma gota de vinho repartida, do que um bom manjar e bom Champanhe Francês, só para um.
    Beijo
    Maria

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    1. As coisas só nos sabem bem, as paisagens só nos parecem mais bonitas, tudo parece melhor quando é partilhado, não é?

      Custa-me estar a escrever isto pois há tantas pessoas que não têm com quem partilhar o que sentem, mas estou a falar por mim. Eu sou assim. Claro que, se não tivesse companhia, não teria outro remédio senão habituar-me.

      Sendo como sou acho que não me habituava mas há quem acabe, até, por gostar. Agora vou dizer uma coisa muito maldosa mas que é verdade: uma amiga da minha mãe desde que está viúva tem corrido o mundo, anda sempre com programas, vai a todo o lado. Tem 80 anos e parece que tem 60, uma alegria e uma energia que só visto. E é ela que diz que nunca tinha gozado tanto a vida como desde que é viúva...

      Enfim, cada um sabe de si e eu limito-me a observar e sorrir.

      Um beijinho, Mary!

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  3. Música linda e grande interpretação.
    Já tinha saudades do Ginjal.
    Abraço
    Mary

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    1. Boccherini é uma descoberta recente para mim e estou encantada.

      Quanto a alimentar o Ginjal: perdi o ritmo, agora o tempo não me dá para aquilo que antes me dava. Tenho que ver se reaprendo a esticar melhor o tempo.

      Um abraço, Mary!

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