Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

27 setembro, 2012

Lembro-me de quartos onde estivemos


Um tempo houve em que os nossos corpos pediam uma cama que não tínhamos. Procurávamos, então, a intimidade nos locais mais improváveis. Os corpos sentiam uma urgência que a cabeça não cerceava e festejávamos o amor louco sob a lua, sob o sol, sob as árvores, sob as ombreiras, sob impensáveis tectos. 

Até que arranjámos abrigo. Era abrigo alheio, era uma cama que não era a nossa. Era um refúgio especial. Lá ouvíamos Simon & Garfunkel e eu dançava ao som de Janis Joplin e éramos tão inacreditavelmente inocentes e loucos. Ignorávamos os riscos, divertíamo-nos com a beleza dos nossos sentimentos, apaixonados carinhosos, apaixonados felizes e festivos, apaixonados cheios de esperança, com a vida inteira pela frente, apaixonados inseparáveis, até hoje inseparáveis.

Não posso, pois, falar de quartos vazios. Mas posso falar de dunas, de areia molhada, de castelos, da relva sob as estrelas, de vozes do outro lado da parede, de uma certa cama forrada com pele de raposa, posso falar de êxtase, de eros, de descoberta, de muita alegria, de música, de penumbra, de luz.

Tudo nos era íntimo porque vivíamos em permanente estado de intimidade, porque o mundo éramos nós, porque tínhamos o mundo inteiro dentro dos nossos corações e porque os nossos dois corações eram, e ainda são, um só. Meu amor.



[Abaixo do casario do Ginjal, Rui Caeiro fala-nos dos quartos que recorda com amor e, logo abaixo, Boccherini continua a encantar-nos, desta vez com uma música bem conhecida]


Passeio ao fim da tarde no Ginjal


                                Lembro-me de quartos onde estivemos
                                como de seios que se abarcam com a mão.

                                Modestos acolhedores eróticos
                                de tão nus e desguarnecidos

                                E de tão pobres e tão impessoais
                                tão voltados para o seu interior

                                vazio, tão mais íntimos de nós


                                [Poema de Rui Caeiro in O quarto azul e outros poemas]

6 comentários:

  1. Muito romântico este texto! Um verdadeiro hino ao enamoramento e ao amor eterno!?
    O casal de mão dada é a confirmação desse encantamento...
    O poema de Rui Caeiro a recordar os quartos com amor.. também foi muito bem escolhido.
    Ouvi o Minueto de Boccherini, em silêncio e gostei. Vou continuar a descobrir este compositor e a seguir o seu Ginjal.
    Parabéns por este espaço tão doce e agradável para a alma e para os nossos sentidos.
    Um beijinho

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    1. Olá Maria Eduardo,

      Durante muito tempo, todos os dias (às vezes pulava o fim de semana), eu começava a minha empreitada nocturna no computador, aqui pelo Ginjal. Só depois é que seguia para o UJM. Depois, no verão, em que estive em casa sem nada que fazer, cheia de calor, de indolência, chateada por estar fechada em casa, perdi completamente o ritmo. Só fazia o UJM e mesmo assim só à noite. Agora estou a retomar.

      É aqui que começo pois é aqui que as palavras começam a formar-se em plena liberdade, escrevendo sobre o que me vem à ideia depois de ler o poema que escolho e transcrevo e depois de também escolher uma fotografia minha para ilustrar as palavras.

      Mas ainda estou um bocado destreinada porque acabo tardíssimo. Também é verdade que começo tarde. Estou a começar agora aqui e já passa das 22:30. Quando aqui começo temo sempre cair para o lado antes de conseguir chegar ao UJM, tanto o sono.

      Enfim...

      Quanto aos amores: não sou dada a amores eternos, nem a promessas de amor eterno, nem a querer garantias de amor eterno. A mim basta-me o do próprio dia e talvez o do dia seguinte. Mas, apesar disso, no caso deste meu amor, com esta de um dia depois do outro, sem saber como, já lá vão anos e anos e anos.

      Um beijinho, Maria Eduardo.

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  2. Que bonito!
    As circunstâncias e o enquadramento eram diferentem, se calhar também a idade, mas lembrei-me deste texto que escrevi porque o amor é demasiado lindo para não o repetir sempre que a "ocasião espreita".

    http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2012/04/o-susto-e-o-beijo.html

    Abraço

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    1. Olá jrd,

      Gostei de seu comentário e já estive a ver o muito tocante 'susto e o beijo'.

      Quando vivi este meu namoro já não havia níveas. Mas o primeiro dia em que falámos aconteceu depois de uma sessão de apoio a Timor Leste, com cânticos ao Monte Ramelau cantados por membros da Fretilin. Não é comparável com sustos e violências mas, enfim, éramos também engagés. E o primeiro beijo não foi muito longe, foi no Largo de S. Mamede.

      E tem toda a razão, o amor é lindo. Acho que é mesmo o que há de melhor na nossa vida (e aqui abranjo todos os tipos de amor).

      Um abraço, jrd.

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  3. Tudo isto me fez lembrar, quartos, tendas de campanha, abrigos sob as árvores, a praia à noite.
    Horas e horas de paixão, loucura, seguidas de momentos de uma doçura imensa, palavras balbuciadas, caricias.
    Tão lindo, Amiga! E eterno. Já a loucura passou, mas o resto continua igual.
    Ainda haverá amores assim?
    Beijinho
    Mary

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    1. Mary, olá,

      Então não há...? Há pelo menos os nossos...

      Mas acho que há. Penso que é importante que exista uma química e depois empatia, sintonia, cumplicidade. E que haja uma construção paciente. E, passados os anos, ficam as recordações cheias de cumplicidades, fica o apoio amigo, fica o conhecimento grande do outro. É uma sorte quando se encontra um amor que dura uma vida.

      Gostei de ler as suas palavras vindas da memória, com recordações felizes, daquelas que nos aquecem o coração.

      Um beijinho, Mary!

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