Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

17 julho, 2012

Num veio de luz, vê desfazer-se a açucena de açúcar, estremecida e pálida


Que dores, que dores escondes dentro desses teus olhos secos? Porque olhas assim, sem ver? Que dores são essas que te levam a essa agonia branda? Que tristeza é essa, que nem voz consegue ter?

Passam as águas a caminho do mar, passam os quase nocturnos veleiros, passam os casais abraçados, as crianças correndo, a luz vai-se esvaindo, e tu, aí, sem nada ver, a olhar com os olhos vazios.

Fazias mimos, bordados delicados, doces enfeitados, poemas de amor e agora, aqui na beira do rio, desfazes-te de tudo, de tudo, sem pressa, sem piedade. Os mesmos dedos que antes escolhiam ingredientes, com mil cuidados, uma cor suave, uma palavra gentil, o açúcar no ponto, o ponto pé de flor, são os mesmos dedos que, agora, alheados, se desfazem de tudo o que laboriosamente foi antes feito. 

Porquê? Que dor é essa?

O corpo seco, os seios tristes, a pele baça, o cabelo escorrido, os olhos parados, és a imagem de uma mulher dorida de amor.

Depois, com os lábios desolados, com um cansado gesto de mão, ouço que dizes baixinho, adeus. E uma outra vez adeus, e uma outra vez, e uma outra, até que o som se esvai e ficas parada esperando que a noite te cubra. Precisas que a noite chegue para, então, poderes velar, em silêncio e recolhimento, o corpo sem vida de um desejo e de um amor que foram fortes demais.



[Logo abaixo da imagem de uma jovem mulher sozinha na beira de um rio que caminha para o oceano, poderão ver um belo poema de Ana Marques Gastão e, logo depois, o piano traz-nos, de novo, Béla Bartók.]


Há semanas atrás, fim de tarde em Belém


                     Retirando as mãos da nuca,
                     sob a pele de exuberância
                     prudente, a mulher reconhece
                     os nós d'água, destino de queda
                     em ascensão. Num veio de luz,
                     vê desfazer-se a açucena
                     de açúcar, estremecida e pálida.

                     Já não atraídos pelo desastre,
                     os lábios retomam a consciência
                     do exagero ébrio de quem por de
                     mais ama e, por isso, a mulher
                     vai passajando a dor velada,
                     vigiando o rigor de um desejo
                     tão corporeamente espiritual.



                     ['Açucena de açúcar' de Ana Marques Gastão in 'Adornos']

2 comentários:

  1. Pôr do Sol18 julho, 2012

    Estes seus dois espaços são quase um serviço publico, pelo menos para mim. Neles tenho redescoberto poetas e autores de que não me lembrava.
    Lembro-me desta poetisa no Diario de Noticias. Jornal que por falta de tempo, e não só, deixámos de comprar.

    Quantas vezes, andando por aquelas bandas me detenho em figuras assim. Sós, de olhar na barra aguardando ver os mastros de algum barco que lhes tragam esperança ou uma solução.

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    1. Olá Pôr do Sol,

      Muito obrigada pela gentileza das suas palavras.

      A poesia, para mim, é a forma perfeita de falar das coisas, sem mal entendidos, sem palavras a mais. Gosto muito de poesia e perco-me por livros de poesia.

      E quando escolhi este poema e fui à procura nas minhas fotografias e vi esta, achei que tinha tudo a ver: pessoas que se deixam ficar, esquecidas, a olhar o mar ou o horizonte. talvez as pessoas assim se estejam apenas a sentir pequenas na imensidão do mundo (como na fotografia, tão imenso é o rio e o céu e tão pequena aquela mulher ali perdida, não é?)

      Um beijinho, Sol Nascente.

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