Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 maio, 2012

Voltar as costas não é nunca abandonar


Sim, é verdade. Não te conseguia ver mais à minha frente, não suportava mais os teus ciúmes, as tuas embirrações. Que farta que eu estava!

Já o disse no outro dia, quando saíste de casa deixando-me furiosa. Tudo te serve para me ofenderes e para me arreliares - que a saia é curta, que as meias são coloridas de mais (e nem vale a pena explicar-te, mais uma vez, que não são meias: são leggings!), que os saltos são altos demais, que o verniz das unhas é muito chamativo, que o penteado é espampanante, que dá demasiado nas vistas. Já não consigo ouvir essa lenga-lenga, ora! Se não gostas, não comas. Deixa-me em paz, ó santinho de pau carunchoso!. 

Mas tu voltas sempre, és um chato, vais-te encavalitar na beira do cais, armado em menina amuadiça e depois, passado um bocado, já aí vens, rabo entre as pernas, pé ante pé. Mas não é para me vires dizer um carinho... não: é sempre para me vires chatear ainda mais. Pois fica sabendo que não mudo. O que é bom é para se ver, ora essa! E depois gosto de me ver assim, fica-me bem, tenho uma boa perna, não vou escondê-la, ora! Se não gostas de ver, olha para o lado. 

E, portanto, desta vez, quem bateu com a porta fui eu. 

Ficaste pregado ao chão a olhar para a minha saia nova de lycra toda às cores e para as minhas leggings fúcsia que fazem pendant com a saia... e nem te dei tempo a respirar. Pus uma écharpe toda fina pelos ombros, agarrei na malinha de mão e... ala que se faz tarde! Aí vai ela...!

Pus estes caramelos aqui da rua todos a olhar para mim. Até o velho da barbearia veio à porta para me ver, a baba até lhe escorria pelo canto da boca. Fiz-lhe um adeusinho com a mão, armada em rainha de Inglaterra. Adeusinho e até ao meu regresso...!

E agora aqui estou, a ver para onde é que hei-de comprar o bilhete. 

Mas não sei. Há tanto tempo que não vou a lado nenhum sem ti. Sei lá onde é que hei-de ir... Que chatice. Se calhar vou só ali até ao outro lado do rio, a ver se arranjo um sítio onde ir comer uns caracóis. Mas não me apetece nada ir sozinha. E tu que também gostas tanto de caracóis... Até parece que já estou com saudades de ti, ó meu estupor. Até que és querido, até que gosto que me espreites para debaixo da saia quando te desculpo de seres tão parvo.

Pensando bem vou mas é mesmo ligar-te a ver se queres ir ali comigo beber uma imperial e comer uns caracóis.



[Bem, depois desta nova cena, só mesmo a ponderação de um poema atilado pela mão de Rita Taborda Duarte e, logo a seguir, Cecilia Bartoli também 'pinta a manta' ao som de Händel.]


Junto à bilheteira



                       Voltar as costas não é nunca abandonar:
                       é apagar o mundo
                       atrás de nós
                       e
                       trocá-lo
                       trocá-lo inge  nua    mente
                       por uma memória
                       imaginada



['Do olhar - Final III' de Rita Taborda Duarte in 'Experiências descritivas - dos sentidos das coisas'

4 comentários:

  1. divertido texto.
    quanto ao poema parece-me um pouco duro na sua sintaxe ou suceder das palavras: não é nunca, e, trocá lo inge.

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    1. Caro Patrício Branco,

      Fico contente que tenha gostado do texto.

      O poema é duro, sim, também acho. Requer uma leitura suave, em voz muito baixa, em marcha lenta, de modo que casa sílaba se transforme em palavra - 'nua' 'mente', uma mente que se desnuda para receber apenas memórias imaginadas.

      Pelo menos, assim o leio.

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  2. Amiga:
    Eu, se fosse homem, também não gostava da maneira de vestir da dama.
    O pior, é que lhe dou razão a ela. Se ela gosta, ela é que sabe,
    Ainda estou meia abalada destes dias.
    Adorei o texto e o Poema. É duro, mas tão verdadeiramente sentido!
    Abraço
    Mary

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    1. Mary,

      Sou como a Mary: ponho-me no lugar da senhora. Vê-se que gosta, que fez gosto na escolha. Tanta gente como ela. Se gostam e não fazem mal a ninguém, para quê contraria, para quê criticar? Eu não consigo. E, pelo contrário, enterneço-e e ponho do lado de quem afirma a sua identidade desta forma (posso não me identificar ou não gostar mas isso é um problema meu).

      O poema levou-me a criar esta história e diverti-me a fazê-lo. é isto que gosto nos poemas: puxam-me pelos neurónios... (e por vezes agitam-me o coração).

      Um beijinho, Mary.

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