Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

07 maio, 2012

Tempo de dança num vago compasso de bela toada


Houve uma tarde, meu amor, que guardo com doçura no mais fundo do meu coração. Era uma tarde dourada, ou então era dourado o sol da tarde que entrava pela janela da casa em que nos escondíamos. Conhecíamo-nos, então, nessa tarde distante, conhecíamo-nos sabendo, meu amor, que era para logo nos separarmos.

Dançávamos mesmo sem música ou então não era dança, era apenas um estreito abraço, o abraço dos que se amam, sabendo que a seguir terão que se separar. Dançávamos e não sabíamos, meu distante amor, que seria a última dança, senão talvez o abraço fosse ainda mais longo.

E os teus olhos riam, felizes e eu ria, feliz, e então reparámos que o espelho mostrava a nosso abraço tão feliz. E ali ficámos, iluminados pela luz dourada da tarde, olhando a nossa felicidade que brilhava no espelho dourado. Abraçados, cheios de amor, felizes, sem saber que o espelho não mais devolveria aquela imagem de um casal unido pela certeza da separação.

Hoje, tanto tempo depois - tanto que já nem sei se aconteceu ou se foi um sonho - chove nesta noite fria, húmida, densa, chove tanto, as árvores escorrem cansadas, ouço a chuva incessante. E é só o que ouço,  não ouço nenhuma música, nem há luz dourada, e o espelho não reflecte a imagem de um abraço feliz, e os teus olhos tão brilhantes estão tão longe, tão longe que eu já nem recordo o rosto a que pertencem. 

Tanto silêncio, tão escuro, tanta chuva. Tanta saudade.



[Abaixo poderão ler um belo poema de Frederico Lourenço e, por falar em dança e para nos animarmos, logo a seguir, uma grande interpretação: é Carmen de Bizet]


No Jardim do Ginjal casal de namorados dança a primeira de muitas danças e sussurra:
Tarde de chuva/Mas que alegria! Parece ser ela a nossa companhia./
Quem não gosta de uma tarde de chuva/Não conhece/Os suaves desejos/Os doces prazeres 
Que uma tarde de chuva pode conter! 

(da autoria de Luísa sobe a Calçada, comentário abaixo)



                              Tempo de dança num vago compasso de bela toada
                              fecha solene a última festa do longo inverno.
                              Chove de novo na húmida noite gelada de maio;
                              nada faria prever o perfume da música nova.

                               Vejo agora teu rosto no espelho da sala dourada;
                               luzem teus olhos ao brilho das velas nos lustres acesos,
                               quando de novo a orquestra entoa a música nova,
                               sempre que soa no brilho da sala a triste gavote.

                               Música minha alheia não soa às árvores altas:
                               ramos e folhas ondulam à chuva na escura montanha,
                               cantam por mim o que vejo ao ver-te no límpido espelho,
                               hoje que mais do que nunca rebrilham teus olhos brilhantes.

                               Pena seria portanto perdermos a última dança;
                               ambos sabemos que vêm vazios compassos de espera,
                               logo que raie daqui a minutos a pálida aurora,
                               ela que traz como sempre o ocaso dos nossos amores.


[Poema 3 de IV de Frederico Lourenço in 'Clara Suspeita de Luz']


NB: No poema original, onde se aqui se lê maio, lê-se março. A troca fica a dever-se ao facto de hoje estarmos em maio, numa noite de chuva

12 comentários:

  1. Cara UJM:
    Hoje, o casal de namorados no jardim do Ginjal sussurra:

    Tarde de chuva
    Mas que alegria!
    Parece ser ela a nossa companhia.
    Quem não gosta de uma tarde de chuva
    Não conhece
    Os suaves desejos
    Os doces prazeres
    Que uma tarde de chuva pode conter!

    Abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa subindo a calçada e fazendo poesia,

      Já está lá no sítio devido a fala dos namorados. Muito bonita esta fala que se enquadra tão bem num dia de chuva.

      Obrigada e um abraço!

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  2. Amiga:
    Que poema lindo, da nossa Luísa!
    Luísinha, parabéns.
    Beijinhos para as duas da
    Mary

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    1. Mary,

      O poema conta uma história. Gostei imenso.

      E a Luísa anda inspirada e se ela disse que os namorados andavam com segredinhos eu, indiscreta, fui lá transcrever os segredos!

      Um beijinho, Mary!

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  3. poema tão visual que parece estamos a ver uma cena dum filme com os cenários descritos. Algo ambientado no sec 19, emma, sense and sensibility, barry lindon.
    choquei ligeiramente com a noite gelada de maio, mas continuei, ele há de facto maios frios, mesmo sem irmos para inglaterras ou escócias. Lidepois a explicação da liberdade tomada, acho bem.
    aliás, quando leio alguns poemas, sinto a tentação de muda los, a ordem dos versos, a pontuação, algum pronome ou preposiçao pesado, etc. neste caso a mudança foi digamos por motivos de calendario.
    bonito o texto que introduz e glosa o poema. Quase diria aliás que o poema remata o texto, que este é a peça forte.

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    1. Patrício Branco,

      Estes seus comentários sempre tão repletos de sagesse. Leio-os e fico sempre a pensar (estou a repetir-me porque já sabe que é assim). O poema, de facto, relata-nos uma história e as palavras dão-nos a ver o cenário no qual os factos se desenrolam. As histórias que refere, de facto, decorrem em ambientes assim, aproximação e ausência, abandono e saudade e sempre com um décor requintado. Tem toda a razão.

      Foi essa história que me levou a reescrever a minha história ou uma outra maneira de contar a mesma história. Comecei a escrever e aquilo estava tão dentro de mim que era como se estivesse mesmo a contar a minha própria experiência. (Embora, nestas coisas, haja sempre um lado autobiográfico)

      Quanto à noite fria de maio... não se esqueça que aqui a temperatura não é tão amena como aí. Agora que escrevo já está outra vez quase calor mas ontem, enquanto escrevia, sabe lá a noite que estava, chovia que Deus a dava e um frio...

      Estava a escrever março e resolvi: espera lá que já te mudo. E troquei por maio.

      E muito obrigada, Patrício Branco, as suas palavras para mim são sempre muito importantes.

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  4. Cara UJM, cantar e dançar ao ritmo da sinfonia das gotas da chuva, sempre nos imbuiu de uma sensação de liberdade e felicidade. Esquecemos o halo de pessoas que nos envolve e vivemos intensamente a plenitude dos nossos anseios. Em dueto sincronizado...multiplicam-se as sensações!
    Gostei do post e dos poemas, quer do da Leonor quer do de F.Lourenço (adorei a sua tradução da premiada ODISSEIA, oferta de uma jovem professora da Fac. Letras de Lisboa, cunhada dum filho meu que, por acaso vive agora em Alcochete).
    Ah!, o seu post de "UJM", sobre o "recomeço" está simplesmente bem feito e adaptado aos tempos actuais.
    Que mil danças e gotas de chuva fecunda lhe reguem a inspiração, pois dali penso que poderá sair quase uma nova saga como a que há tempos atrás produziu.
    Felicidades.

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    1. Caro DBO,

      Que contente fico quando o vejo por aqui...! Gostei de ler o que escreveu, e 'cantar e dançar ao ritmo da sinfonia das gotas de chuva' é tão bonito.

      Mas vou alterar: 'cantar, dançar e escrever ao ritmo da sinfonia das gotas de chuva'. Faltava a palavra 'escrever'. Adoro escrever. Hoje estou aqui já tão tarde e nem vou ter tempo de aqui colocar nenhuma mensagem e nem imagina a pena que me dá.

      Não percebi se é a professora ou o seu filho que vive em Alcochete mas parece-me que é o seu filho. Então vem para estas bandas de vez em quando para o ver? E, nesse caso, pode ver este rio maravilhoso? Alcochete é um terra muito agradável, ainda conserva uns vestígios de província mas está mesmo na beirinha do rio.

      Obrigada também pelo 'recomeço'. Eu lanço-me nestas histórias completamente sem rede. Escrevo num dia sem ideia nenhuma do que vai sair no dia seguinte. às tantas pode não sair nada de jeito. Mas se for, paciência, não é? Se me ponho com medos, então é que não sai nada de jeito.

      Obrigada, DBO!

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    2. Cara UJM, só para a esclarecer, o que me é grato, acrescento que a família da minha nora mora em Alcochete, embora o meu filho esteja com os sogros. A sua cunhada (a tal professora) vive noutra casa, com o companheiro, ele também prof. da Faculdade.
      Sim, às vezes vou a Alcochete, essencialmente para rever o malandro de um neto com 2 anos e meio...castiço q.b. (sei que sou vaidoso nestas coisas, pois já tenho uma linda neta com quase 12 anos, a viver comigo em Santo Tirso).
      Desculpe-me a maçada. Felicidades

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    3. Netinhos meninos com 2 anos e meio são o máximo. fazem progressos fantásticos de semana para semana. Eu tenho um com 3 e meio e outro com 1. E quanto a meninas, que são umas princesinhas, eu tenho uma a caminho dos 2. Adoro-os a todos (ainda ontem estive quase até às 11 com os dois rapazinhos na casa da minha filha, por isso não tive tempo de escrever aqui nada). Percebo que, para estar com o rapazinho castiço, tenha que se pôr, de vez em quando, a caminho. Um xi-coração de um netinho é uma ternura a que nenhuma pessoa se pode furtar...

      A sua menina de 12 anos já deve ser uma rapariguinha toda crescidinha e é bom que esteja perto dela. É bom para ela e para si, não é?

      Felicidades para si e para a família toda!

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  5. Cara UJM:

    Obrigada pela gentileza de legendar a sua foto com as minhas palavras.

    E um beijinho para a carinhosa Mary.

    E tenham dias felizes
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa, subindo, subindo a calçada,

      Não foi gentileza nenhuma, foi apenas fazer o que era 'devido'. Ficou ali lindamente. Eram as justas palavras para os namorados sussurrarem e tinham que estar bem visíveis.

      Obrigada eu.

      Dias felizes também para si.

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