Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

31 maio, 2012

Do amor, da sua página em branco, sempre vivi


O rio às vezes é azul e dele emana luz, outras vezes é cobalto, chumbo, quase cinza, quase sombra. Por vezes resplandece de vida e, nele, os peixes dançam e espreitam o sol e, outras, transporta vestígios desolados, árvores mortas, restos de vida.

E os barcos por vezes trazem velas brancas e deles vêm vozes que chegam a terra e deslizam e rodopiam na água e, outras, estão silenciosos, vazios, amarrados.

Tantas vezes, estes pequenos barcos que aqui se acolhem, têm inscritos nomes de mulher. 

Soraya num fundo verde esmeralda flutuando numa superfície carregada de sombras e de luz. 

Quem assim o escreveu, quis talvez mostrar o seu amor a uma mulher. 

Talvez. 

Talvez, enquanto pintava as amorosas letras, o homem tenha pensado que tal como o rio, assim é o amor. Luz e vida tantas vezes, sombra e desolação outras. 

Mas sempre o pescador desce da sua casa para entrar na sua Soraya e se fazer ao rio. Sós os dois, o homem e Soraya, enfrentarão as oscilações, o temperamento meridional deste rio quase mar. E irão e regressarão vezes e vezes sem conta, amantes inseparáveis, nas águas incertas e, apesar disso, tão amadas, procurar o amor. Aí se perderão por amor. Aí se salvarão por amor. 



[Abaixo do barco chamado Soraya poderão ver o belo poema de Casimiro de Brito e, logo a seguir, mais um momento especial: Simone Kermes numa vibrante interpretação de Piangerò la sorte mia de Händel]


No Tejo, junto ao Ginjal, pequeno barco de nome Soraya. Lisboa do outro lado quase se  esbate.



                            Do amor, da sua página em branco,
                            sempre vivi, umas vezes da luz
                            que dele emana, e tanto me cegou,
                            outras vezes das penas escuras
                            que depois amanhecem,
                            e até cantei.
                            Caindo e cantando vou morrendo,
                            em arco me vou dobrando tão devagar
                            quanto posso: há um lume que me consome
                             e só em ti me perco e só ela,
                             a página branca do amor,
                             me salva.



[Poema 38, inspirado (?) em Sophia de Mello Andresen Andresen, de Casimiro de Brito in 'Amar a Vida Inteira']

6 comentários:

  1. Querida UJM

    Do amor haverá sempre uma página por escrever, de instantes não vividos, da desejada cumplicidade a dois, de tantas coisas simples diluídas no tempo antes mesmo de acontecerem, do que poderia ter sido e não foi.

    Bj

    Olinda

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    1. Olá Olinda!

      Que bela afirmação a sua. Vê-se que conhece bem o que é e como funciona o amor. Subscrevo.

      Gostei da imagem da página em branco para falar de uma relação amorosa porque é mesmo isso, há sempre a história para escrever.

      Um beijinho.

      PS: Peço desculpa por só hoje estar a responder. Ontem tive a casa invadida pelo exército demolidor que de vez em quando se junta para me virar a casa do avesso. Por isso, ontem, quando aqui me sentei, ainda estava atarantada. Depois, estive a ver as fotografias que lhes tirei e ainda me fartei de rir. É que são três coisas pequenas que não deixam 'pedra sobre pedra'...

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  2. ERA UMA VEZ02 junho, 2012

    Soraya é um nome de infância.
    Seguia pelos jornais a sua história e a minha mãe explicava-me tudo.

    Eram esmeralda os seus olhos e o seu rosto deve ter sido dos mais belos que os anos cinquenta/ sessenta terão visto.

    Casada com o Xá da Pérsia(ou Irão) dizia-se que eram um "amor maior".
    Lindos, elegantes, viajavam pelo mundo e deslumbravam.

    Como nas histórias havia uma bruxa má, neste caso "o destino".
    Depois de alguns anos juntos, confirmou-se a infertilidade da princesa dos olhos verde/ esmeralda.
    E as razões de Estado foram mais fortes do que o amor.
    O Xá deveria dar um herdeiro ao seu País.
    Desfeito o casamento, o Xá voltou a casar com outra bela mulher de quem teve prole.

    Dizia-se que em segredo se encontraria com Soraya em Paris de vez em quando. A verdade é que a princesa dos olhos tristes não voltou a ser feliz.

    A ironia da História é que a tragédia desta separação foi desnecessária.
    Anos mais tarde o Xá foi deposto e morreu no exílio...e o seu herdeiro não faz falta nenhuma ao seu País, entregue há muito a outra gente.

    Esta história dava um filme não dava?
    ------------------------------------------------
    Entretanto, alguns deram o seu nome ao barco dos seus destinos...

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    1. Olá Erinha,


      Começo também por pedir desculpa por ontem me ter falhado a resposta aos comentários. Já expliquei à Olinda mas sinto-me no dever de também lhe dizer a si. Dois rapazinhos irrequietos e uma primiminha temperamental e curiosa juntaram-se e removeram tudo o que havia remover. E eu antes deles chegarem já faço uma limpeza mas, de cada vez que cá chegam, já chegam um pouco mais alto e mais longe. Aparece um com um vasinho da Vista Alegre e eu fico em pânico e mal salvo o vasinho, já vem outro com a tampa de uma caixa, e salva-se a tampinha e já vem outro com uma moldura, e a gente vira-se para um e já aparece outro com uma pá e estamos a tirar-lhe a pá e já aparece outro de vassoura. E eu ontem ainda estava meio diminuída fisicamente, sem poder acorrer pessoalmente tudo e ainda fiquei mais azamboada.

      Quanto à Soraya lembro-me muito bem desta história triste. Coitada. devia sentir-se frustada e infeliz e, como se isso fosse pouco, teve que abrir mão do homem de quem gostava. E era tão bonita.

      E tem razão: para nada. A vida tem destas coisas. Deu um nó 'cego' na vida daquelas pessoas.

      Mas deve ter sido pelos olhos verdes dela que o pescador pintou o barco de verde e lhe chamou Soraya.

      Um beijinho, Erinha.


      Quanto

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  3. Amiga:
    Tal como a "Era uma vez", segui a tragédia de Soraya. Chorei, quando ele a teve que deixar. Sempre que leio ou oiço o nome "Soraya", vejo duas esmeraldas tristes, num rosto maravilhoso.
    Se a amava, porque a deixou? Amor maior, foi o do Rei Eduardo VIII de Inglaterra, por uma mulher pouco bonita, divorciada 2 vezes. Por ela deixou o trono, do Reino onde o sol nunca se punha. Da loira e fria Inglaterra, saiu um homem doido de amor.
    Beijinhos.
    Mary

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    1. Olá Mary,

      A cultura persa tem um peso brutal e devia ser natural para eles que mulher que não gerasse um herdeiro fosse corrida como se fosse um ser inútil.

      Tem razão quando ao Eduardo que abdicou do trono por uma mulher que, fisicamente, nem sequer era tão bonita assim. Comparada com a Soraya... Mas a cultura ocidental é mais permissiva a casos de amor do que a persa. Deve ser isso. Ou então era o Xá que não era tão forte assim.

      Um beijinho, Mary.

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