Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

14 maio, 2012

Como quem, vindo de países distantes fora de si, chega finalmente onde sempre esteve


Tu que me lês, Leitor ou Leitora, permite que te pergunte: que balanço fazes da tua vida? 

Andaste sempre dentro de ti, percorrendo os ajustados caminhos do destino que escolheste? Ou andaste por fora, quero dizer: por fora de ti, percorrendo caminhos que te são estranhos? 

Por onde passaste deixaste um rasto, deixaste ao menos que a tua sombra ficasse presa num qualquer recanto onde, quem a veja, ainda se lembre de ti? Ou já nem te lembras dos caminhos remotos por onde a tua sombra se arrastou indiferente?

Recordas cada ano da tua vida, relembras o que fizeste, o que viste, o que amaste? Ou a tua vida tem manchas negras, vazias, que desaparecem da tua memória, sem saudades, sem história?

Saboreaste cada momento: esta é a minha casa, esta é a casa que tem o meu cheiro, as minhas cores, os meus objectos, os meus afectos? esta é a cama em que me deito, tão minha, os meus lençóis, a almofada onde deito a minha cabeça? esta é a porta que transponho quando entro dentro da minha casa, dentro de mim? Apreciaste e agradeceste a sorte de teres uma porta que se abre para dentro de uma casa que tem o teu cheiro e onde a tua sombra se acolhe em paz? Ou transpuseste com apatia e tédio a tua porta como se fosse a porta de uma qualquer casa estrangeira?

Olhaste, com agradecimento e amor, os olhos de quem te ama e que fala contigo uma língua que é feita de silêncios, cumplicidades, beijos? Ou ignoraste o carinho de quem te olhava com os olhos felizes de quem regressa de longe, de outra estação do ano, de outro mundo, apenas para se deitar nos teus braços?

Responde para ti, apenas para ti. Ou, então, diz-me em segredo.



[Abaixo mais um belo poema de Manuel António Pina, um Poeta que é muito cá do Ginjal e, logo depois, um momento sublime, regnava nel silenzio - e, é, claro, ainda Donizetti]


Hoje antes de anoitecer, em Cacilhas, olhando o Tejo e Lisboa e um navio que tinha entrado no rio


                                Como quem, vindo de países distantes fora de
                                si, chega finalmente aonde sempre esteve
                                e encontra tudo no seu lugar,
                                o passado no passado, o presente no presente,
                                assim chega o viajante à tardia idade
                                em que se confundem ele e o caminho.

                                Entra então pela primeira vez na sua casa
                                e deita-se pela primeira vez na sua cama.
                                Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
                                cidades, estações do ano.
                                E come agora por fim um pão primeiro
                                sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


                                 ['O regresso' de Manuel António Pina in 'Como se desenha uma casa']
                   
                 

7 comentários:

  1. Cara UJM:
    Tanto para dizer sobre este post e as teclas negam-se a traçar qualquer palavra significativa. Apenas conseguem obedecer ao silêncio!
    Lindo!
    Abraço amigo da
    Luísa sobe a calçada

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  2. Querida UJM

    Momento de Luz este, que nos conduz a uma introspecção a que muitas vezes damos a volta. Sim, é preciso paramos um pouco e olharmos para dentro de nós e reaviarmos as memórias dos afectos, dos lugares, das pequenas coisas ou das grandes. Na vida, andamos por tantas veredas espinhosas que a nossa tendência instintiva, própria de seres sobreviventes, é procurar esquecer, aliás, o nosso cérebro encarrega-se disso. O esquecimento poderá ser um bálsamo em alguns casos mas também o é a lembrança dos momentos e das pessoas que preencheram e preenchem as nossas vidas.Tudo faz parte desta nossa passagem que, ao fim e ao cabo, é tão efémera.

    Manuel António Pina, também num dos seus melhores momentos.

    Beijos

    Olinda

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    1. Querida Olinda, olá, bom dia!

      Ontem o poema que escolhi tocou-me muito. Acresce que umas duas horas antes tinha feito esta fotografia que também me tinha tocado, se assim me posso exprimir. Ver um homem assim, àquela hora, absorto, totalmente absorto, em frente à quietude imensa que é o rio àquela hora e Lisboa que se prepara para o anoitecer, fez-me pensar que estaria a passar a sua vida em revisão.

      E o texto saíu-me assim, enquanto eu própria pensava na minha vida.

      Fico contente que tenha gostado (eu também gostei de escrever...)

      Um beijinho, Olinda, e muito obrigada pelas suas palavras que tanto me incentivam.

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  3. Cara UJM:
    Talvez uma explicação para um texto que escrevi sem a devida clareza.
    Gosto muito dos seus textos de grande sensibilidade e das suas fotos que revelam um olhar sempre atento. E ontem, o seu texto e o poema de Manuel António Pina, sensibilizaram-me e tocaram-me tanto que não consegui palavras para expressar o bem que me fizeram as suas, tão acertadas e bonitas, e dei comigo no silêncio da noite a rever a minha vida.

    No seu silêncio leio a mais perfeita resposta de uma profunda sabedoria.

    Um abraço amigo da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa subindo a calçada,

      Há textos que me saem como os leitores os vêem escritos e que eu quase os leio como não tendo sido escritos por mim. Escrevi este texto e depois fiquei a pensar nele, eu própria revendo a minha vida, tentando perceber se me lembro de todos os períodos e tentando perceber se os outros se lembram de mim nessas alturas. Há coisas que me deixam a pensar como aquelas pessoas que são importantes na nossa vida (na vida profissional, por exemplo) e que, uma vez afastados, ninguém mais se lembra deles nem, em concreto, nada fica. E há outras pessoas que deixam marcas.

      Acho que temos que sentir a vida, sentir mesmo, e devemos também tentar deixar algumas marcas.

      Percebi as suas palavras, as primeiras, e gostei muito de as ler. Mas achei que deveria respeitar a emoção subjacente à sua reacção (até porque eu estava também assim, a pensar comigo mesmo).

      Muito obrigada pela sua compreensão.

      Um abraço com estima para si, Luísa.

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  4. Atenciosa UJM:

    Obrigada pelo cuidado e amabilidade com que responde sempre.

    Um abraço amigo
    da Luísa

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    1. Ora essa, Luísa, eu é que agradeço - mas agradeço mesmo (as suas visitas, as suas palavras).

      E agora a ver se me vou deitar que amanhã espera-me um grande dia e, se tudo correr como previsto, logo à noite darei conta das minhas andanças. Sabe onde vou?


      Um abraço.

      PS: E depois (se tudo correr como penso) diga lá quem é que tem razão para agradecer...

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