Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

03 abril, 2012

Permite-me aceder à tua idade, ao teu vagar paciente

   
Esta árvore suave que assim se interpõe entre mim e o homem de idade que está do outro lado, revela a sua sabedoria. O homem senta-se, sozinho, vergado, cabeça baixa. Sabemos lá nós em que pensa ele, o que sente. Eu passo e ele nem me vê. Está entregue a si próprio, isolado, talvez fugindo da miséria dos homens. A árvore que o encobre faz bem, a solidão não deve ser desvendada, a solidão deve ser vivida em silêncio, sem testemunhas. 

Ou então não é tanto a solidão, talvez o homem queira apenas extasiar-se em silêncio, sem o contágio de outros olhares. Um homem sozinho no meio de uma beleza imensa.O seu olhar apenas, pleno, o seu olhar íntegro, limpo, um olhar único, para toda a deslumbrante paisagem. E então a árvore talvez seja apenas a cortina, a elegante cortina que resguarda o seu pudor de um homem que se vê pequeno perante a grandeza do rio, perante a magnífica beleza da paisagem. A árvore é a cortina quase transparente que tapa com a subtileza de quem quase destapa.

Ou então a árvore é mais que isso, é ninho, aconchego, um braço quente e amigo. Talvez a árvore seja, então, isso, a casa a que o homem regressa quando quer entrar dentro de si próprio.

Ou então a árvore é um corpo, o corpo da mulher amada, a que tem rendas verdes e veludos macios, a que tem cheiros quentes e íntimos, a que tem recantos secretos, refegos interditos, a mulher na qual este homem solitário se abriga quando chega, cansado da guerra, ansiando por um afago feito com paciente vagar.



[Repousem, meus amigos, à sombra suave desta árvore de renda, depois detenham-se no poema de João Miguel Henriques e, não parem, meus amigos, deslizem até à sonata para piano de Mussorgsky]

Belíssima árvore no Jardim do Ginjal - e um homem do lado de lá


                             permite-me aceder à tua idade, ó árvore escura
                             ao teu vagar paciente,
                             nenhum outro ser sobre a terra
                             de tronco ou carne vermelha
                             exibe como tu a permanência

                             imagino ficar escuro na floresta
                             ou deixar-me por um parque da cidade
                             séculos inteiros
                             a explodir folhas pelo caminho
                             e vê-las cair

                             assistir à miséria dos homens

                             escuro, feito tronco


                             ['A uma árvore escura' de João Miguel Henriques in 'Isso Passa']

4 comentários:

  1. um belissimo poema sobre a arvore ou as arvores, na verdade de caracter existencialista, as arvores tambem são seres e têm vida e existencia. Mas o curioso e bonito é que o poema é dito por um homem (ou mulher, ser humano) que assim fala da vida das arvores, imaginando como ela será, quase a invejando por elas não sofrerem a miséria dos humanos.
    O poema tambem pode ser visto como na glosa acima, como metaforas onde entram o aconchego, o acolhimento, o abrigo da mulher amada ou até como simbolo do que o homem poderia ser.

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    1. Às vezes as coisas vêm ter connosco. Eu tinha estado a ver as fotografias do fim de semana e tinha gostado desta fotografia. Depois, quando fui escolher o poema, fiz como faço sempre. A mesa onde tenho o computador tem pilhas de livros de poesia e a estante ao meu lado também. E então, quase ao acaso, pego num livro, folheio ao de leve e escolho um que, de alguma forma, me inspire. E ontem, quase à primeira, apareceu-me este poema.

      Quando me acontece uma coisa assim, fico contente que nem imagina. É que, neste caso, veio mesmo a calhar com aquela fotografia.

      Eu gosto muito de árvores, já plantei várias. E cuido delas como se fossem crianças. E, quando são árvores grandes, é como se fossem pessoas de idade da família, amigos. Ou casas.

      (Pancadas...! Às tantas não sou mesmo boa da cabeça...)

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  2. concordo, cuidar de plantas, pequenas ou maiores, é das ocupações de lazer mais cativantes, ir todas as manhãs ver se há folhas novas, se a flor ou o fruto já começaram a crescer ou abrir, se necessitam de água, etc.
    Há agora muita oliveira a vender, em bonsai ou cortada de modo a poder estar num vaso em casa, até nos supermercados se vendem. E curiosos ginsengs. tambem variedades de cactos.
    Distração economica, só bebem água, são modestas as plantas e cuidar delas é tambem um acto de afecto.

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  3. Eu agora tenho na cozinha uns vasinhos com plantas aromáticas. A minha cozinha cheira a hortelã fresca, a manjericão - gosto imenso. E, quando estou no campo, delicio-me com o passar das estações, com o crescimentos das árvores. No outro dia constatámos que uma figueira morreu e tive um desgosto. Afecto mesmo.

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