Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

23 abril, 2012

Do beijo fica um sereno olhar, o amor das coisas minúsculas e humildes


Ah meu amor, beija-me, beija-me. Beija-me aqui, em cima do rio, em cima da maresia, neste dia em que a chuva quase nos envolve. Sinto a tua pele molhada e não sei se é chuva, se é maresia e os teus lábios molhados talvez sejam de chuva, de maresia ou de saliva. E eu nem sei se é doce, se é salgado o sabor da tua boca. Ou talvez sejas tu que sabes assim, meu amor, meu amor. Beija-me, amor, beija-me.

E o rio passa por nós, cinzento e picado, e salpica-nos e as gaivotas andam como doidas à nossa volta, ficam assim, loucas, quando te vêem a beijar-me, gaivotas loucas. E uma outra fica pousada, insolente, a olhar para nós e tu provocas, tu provocas e, também insolente, de frente para ela, portas-te de forma indecente.

E vem o vento e envolve-nos, o vento envolve-nos, envolve-nos e as gaivotas voam e o rio salpica-nos e eu deixo-me ficar, aninhada nos teus braços, junto ao teu corpo quente e nem vejo o rio, nem vejo as gaivotas, nem sinto o vento porque tu me beijas e quando tu me beijas eu voo em volta de mim como as gaivotas loucas que voam, que voam.

E eu quero que tu me beijes para sempre, beijos eternos meu amor, beijos eternos que nos protejam contra os venenos da vida, meu amor, contra a morte, meu amor. Para sempre, meu amor.



[Pois, meus Amigos, em dia de amantes unidos contra os venenos da vida, convido-vos à leitura de um belo poema de Assis Pacheco para logo de seguida ouvirem um trecho belíssimo de Rossini numa história de amor e morte.]


Numa tarde sombria, chuvosa, namorados junto ao Cais das Colunas, rodeados pelo Tejo e por gaivotas


                                     Do beijo fica um sabor,
                                     do sabor uma lembrança,
                                     um vento leve, uma espuma.

                                     Do beijo fica um sereno
                                     olhar, o amor de coisas
                                     minúsculas e humildes,
                                     um pássaro que vai e vem
                                     da nossa boca às palavras.
                                     Do beijo fica, suprema,
                                     a descoberta da morte.
                                     Um vento leve, uma espuma
                                     salgada, à flor dos lábios.



['Um vento leve, uma espuma' de Fernando Assis Pacheco in 'A Musa Irregular']

4 comentários:

  1. Amiga,
    Bom lugar para namorar. O Tejo e as gaivotas. Assis Pacheco, desapareceu tão cedo, tem imagens que definem sentimentos. Este pequeno, grande poema, demonstra-o.
    Beijinho
    Mary

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    1. Olá Mary,

      Em tantos lugares que ja namorei em Lisboa e aqui, que parece er um lugar tão especial, nnca namorei... Mas, enfim, ainda estou mais que a tempo. A ver se um dia destes lá vou experimentar a sensação.

      Assis Pacheco era um homem de afectos, de emoões. Pena que o coração se esforçasse demais para o expressar e lhe pregasse tão imperdoável partida.

      Um beijinho, Mary.

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  2. Cara UJM, hoje atrevo-me a deixar uma mensagem que espero não destoe do seu belíssimo jardim do "Ginjal e Lisboa", um recanto que pressinto como sendo o seu refúgio na beleza das imagens e dos poemas que aqui deixa, ao sabor dos seus leitores. Gosto da simplicidade dos textos e da beleza das imagens. Dos poemas, nem discuto, pois adaptam-se quase sempre às cores e temas das imagens.
    Não sendo eu um verdadeiro poeta, mas gostando de poesia (como todas as almas sensíveis) atrevo-me a replicar com um proto-poema baseado neste, do grande poeta Assis Pacheco que sempre admirei. Permita-me que lhe estrague um pouco o jardim e, quiçá a sua sensibilidade. Cá vai:

    "Do beijo fica a doçura,
    da doçura uma esperança,
    um leve sopro, a candura.

    Do beijo fica o silêncio
    dum olhar terno e sereno,
    sublime gesto que exala
    aromas, de boca em boca,
    numa ausência de palavras.
    Do beijo fica, solene,
    a descoberta da vida.
    Uma aragem fresca e dócil,
    voando, à flor dos lábios."

    Desculpe-me o atrevimento e que Assis Pacheco me perdoe a ousadia da fraca imitação.
    Felicidades neste seu belo recanto sentimental, o Ginja e Lisboa.

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    1. Caro DBO,

      Que surpresa tão agadável vê-lo por aqui.

      Sabe que adorei a sua adaptação? Eu detesto escrever sobre a morte, evito ao máximo colocar aqui o que quer que seja que tenha a ver com a morte. Ontem vacilei ao escolher este poema.

      Mas a música, a fotografia, tudo 'pedia' um poema assim. Mas fiquei um bocado contrariada. Depois ao escrever aquele pequeno texto, andei ali a hesitar com o final mas como quero que o texto remeta para o poema, lá o escrevi como ficou.

      Agora, ao ler a sua 'versão', achei que era esta mesmo a ideia que eu preferiria ter aqui. A doçura do romance e o gosto de um beijo sem palavras e tudo isto ser afinal a descoberta da vida que virá a seguir.

      Por isso, nada a desculpar e tudo a agradecer (e até parece telepatia).

      Muito obrigada ... e atreva-se mais vezes...!

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