Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 abril, 2012

Desconfio dos poetas que falam muito de luz, das manhãs e das árvores

 
Gosto das manhãs, gosto da luz, dos dias abertos, desnudos, impúdicos. Gosto de flores, de árvores, de folhas, de frutos, do sumo que escorre dos frutos, gosto dos pássaros que se passeiam entre nós, ou que se escondem nas árvores ou que atravessam os céus. Gosto de crianças correndo nas manhãs floridas, gosto de animais brincando no meio das crianças, gosto do sol iluminando as crianças ao pé das flores perfumadas, gosto da beleza inocente e pura.

Gosto.

Mas gosto ainda mais da tarde e da noite, gosto do mistério das sombras, gosto do mar encapelado, do rio indómito, bravio, gosto das árvores desenhadas contra os céus escuros, gosto da gente que se recorta, com sobranceira valentia, contra a magnífica paisagem, gosto das sombras que avançam solitárias para dentro da noite.

Aos sorrisos bentos, às vozes mansas e temperadas, aos meio gestos e às palavras brandas, prefiro a gargalhada, o grito, os peitos abertos, os murros na mesa, os beijos apaixonados.

Gosto de ver a vida de frente, gosto de entrar por dentro do cenário, gosto de ver a gente corajosa que avança mar adentro, que apanha frio, que sofre o vento, tempestades se necessário for, apenas para apanhar um pequeno peixe. (O peixe que alimentará a família)

E gosto de palavras, gosto de poemas que gostam de palavras, gosto de pessoas que gostam de poemas, gosto de pessoas que se perdem por palavras, que olham de frente as palavras, que as defrontam, as desafiam. E gosto, ah mas quanto eu gosto...!, gosto muito da vida, da vida  inteira, da vida que não se rende à brandura dos dias.



[E logo abaixo do homem suspenso sobre o Tejo, pode encontrar toda a emoção de Uma lágrima - Mussorgsky, claro]

Pescador sobre um Tejo agitado, de frente para Lisboa, num fim de dia frio, com pouca luz


                              Desconfio dos poetas
                              que falam muito de luz, das
                              manhãs e das árvores
                              na sua obsessão hospedeira
                              de frutos   aves   e
                              folhas. Desconfio dos que cantam
                              lareiras e vozes mansas, tentando
                              apaziguar o poema com a sua
                              indústria de incensos. Eles
                              encenam como velhos profetas
                              tardias formas de beleza
                              extinta - e fazem do verso
                              um ritual nado-morto
                              de pequenos afectos,
                              indiferentes à faca
                              incandescente que separa
                              o corpo das palavras
                              da substância do mundo.


                              [Quebra-luz de Inês Lourenço in Câmara Escura]

"Desconfio dos poetas"
que desconfiam dos poetas que cantam a paz das manhãs claras
ou as árvores que renascem
as águas que murmuram
antigas histórias de amor ou de saudade

deixem em paz os poetas
na sua eterna inquietação
na revolta
no silêncio
no grito
ou apenas na contemplação...em liberdade



[Poema da autoria da Poeta 'Era uma Vez' in comentários aqui abaixo]

8 comentários:

  1. uma arte poetica pessoal do poeta inês lourenço

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    1. Caro Patrício,

      É, de facto, uma visão pessoal. Há cada vez mais pessoas que gostam de viver envoltas em sombras. E é verdade que vidas aparentemente sempre em festa são, muitas vezes, meras encenações (vide revistas do 'social')

      Eu, que gosto de sol, luz, espaços abertos, percebo pessoas assim pois tenho também (embora não exclusivamente!) um certo fascínio pelo silêncio, pela noite.

      Mas, enfim, gostos são gostos e aliás, às vezes, é coisa transitória.

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  2. ERA UMA VEZ05 abril, 2012

    "Desconfio dos poetas"
    que desconfiam dos poetas que cantam a paz das manhãs claras
    ou as árvores que renascem
    as águas que murmuram
    antigas histórias de amor ou de saudade

    deixem em paz os poetas
    na sua eterna inquietação
    na revolta
    no silêncio
    no grito
    ou apenas na contemplação...em liberdade

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    1. Erinha,

      Já a elevei para o lugar em que, por estas bandas, se sentam os Poetas.

      E está no sítio certo por forma a exercer o contraditório de viva voz.

      Que às trevas se sobreponha a luz, que às noites agrestes se sobreponham as manhãs claras - ou vice versa.

      Quem sabe transformar a vida em poesia pode tudo e aqui são todos muito bem vindos.

      Obrigada, Erinha, e um beijinho.

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  3. ERA UMA VEZ06 abril, 2012

    Obrigada Jeitinho

    Amabilidade sua.
    Uma Páscoa de Paz para si e para todos os que têm a imensa sorte de a ter por perto.
    Bj.

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  4. Erinha,

    Claro que eu é que tenho que agradecer.

    Obrigada pelos votos de boa Páscoa e retribuo (vamos estar todos juntos e vai ser aquela confusão e reboliço que se sabe mas que alegria...!). Que seja um dia bem passado para si e para os seus. Beijinhos a todos, em especial às coelhinhas pataniscas.

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  5. :)

    E eu só posso dizer: GOSTO! O seu texto diz tudo e gosto disso tudo...

    Desejo-lhe uma Páscoa Feliz.

    Beijinhos

    Olinda

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    1. Muito obrigada, Olinda.

      O mundo é cheio de claros-escuros e todos os momentos têm a sua beleza. saibamos, pois, amar a vida.

      Um bom Dia de Páscoa também para si e para os seus.

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