Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

22 abril, 2012

Ausentes são os deuses mas presidem

   
Não é solidão isso que sentes, meu Amigo, não é. É talvez um momento apenas teu, um viagem ao teu coração, um silêncio. Não solidão.

Vais andando ao longo da tua vida, percorrendo os caminhos das tuas idades, vais conhecendo a evolução natural, a descoberta, a inocência, o tédio, a saturação, o desespero, e vais recomeçando, uma e outra vez. Umas vezes com alegria, outras com apatia, mas vais andando porque assim é a vida.

E se uns dias sorris e outros são lágrimas o que sentes escorrendo dentro de ti, não te entristeças porque assim é a vida e, logo, logo vais renascer.

Mas, meu Amigo, nunca te feches. Enquanto fores percorrendo as veredas às vezes tão estreitas da tua vida, vai olhando. Vê o rio, vê o largo horizonte, vê o imenso céu e os castelos transparentes que nele se desenham, vê as aves libertas que atravessam os ares e vê as árvores que se refazem, as flores de uma beleza tão perfeita, e vê os olhos meigos ou ariscos dos animais e vê, sobretudo, as pessoas.

Olha e vê as pessoas, percebe as suas vidas, aproxima-te, dá a mão, deixa-te abraçar. Porque assim é a vida que é boa de viver.

Não estás só. Algures há um olhar complacente sobre ti, um olhar generoso. Há sempre. Não sei se são os deuses transparentes e ambíguos, se são os pássaros que lá do alto olham por nós, se são as memórias dos que estão longe mas vivem dentro de ti, se são as pessoas que, tal como eu, de longe, te enviamos estas palavras que atravessam os ares por mais longínquos que sejam, não sei. O que sei é que há sempre alguém que olha por nós e que nos pede a nossa atenção ao mundo.



[Abaixo da gaivota que parece presidir aos destinos de quem o seu olhar alcança, poderão ver o belíssimo poema de Sophia e, logo a seguir, um dos mais belos momentos, a Casta Diva por Renée Fleming que, assim, abre a semana de Bellini]

Num dos edifícios do Ginjal, orgulhosa gaivota observa o Tejo e Lisboa e quem por aí passa


                Ausentes são os deuses mas preside.
                       Nós habitamos nessa
                       transparência ambígua,

                Seu pensamento emerge quando tudo
                        de súbito se torna
                        solenemente exacto.

                O seu olhar ensina o seu olhar:
                         nossa atenção ao mundo
                         é o culto que pedem.



['Homenagem a Ricardo Reis/III' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Os poemas da minha vida', Miguel Veiga]

2 comentários:

  1. Amiga:
    A gaivota, repare nas vezes que falamos em gaivotas. Eu adoro-as e a minha amiga também.
    Lembrei-me de um poema de Manuel Alegre "Lisboa perto e longe". Mando-lhe um pouquinho:

    Lisboa chora dentro de Lisboa
    Lisboa tem palácios sentinelas.
    E fecham-se janelas quando voa
    nas praças de Lisboa -- branca e rota
    a blusa de seu povo -- essa gaivota.

    Manuel Alegre.

    E vem Sophia e um poema lindo.
    E um artigo de uma sensibilidade enorme. Uns braços abertos.
    E volta a Gaivota, a nossa eterna gaivota. A de Alexandre O'Neill:

    Se uma gaivota viesse
    trazer-me o céu de Lisboa
    no desenho que fizesse,
    nesse céu onde o olhar
    é uma asa que não voa,
    esmorece e cai no mar.

    Alexandre O'Neill

    Já ouvi Bellini.
    Como eu entendo bem, a sua sensibilidade!
    Beijinho, Amiga
    Mary

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    1. Mary,

      Que comentário tão bonito, estou aqui a ler de cima para baixo e de baixo para cima.

      As gaivotas são seres livres. Adoro vê-las, ou a voarem com as suas grandes asas muito abertas ou a passearem ou, então, assim, altivas, altaneiras.

      Se eu me aventurasse a escrever poesia, haveria de escrever muita poesia sobre estes pássaros do mar.

      Um beijinho, Mary e muito obrigada pelos poemas.

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