Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

06 março, 2012

Quando a manhã se insinua e os corpos, obstinados, não querem e não deixam e mais e mais

   
Olho as fotografias e vejo dois jovens, eu cara de menina, sorrindo sempre, por vezes os olhos quase fechados, querias fotografar-me sempre de frente para a luz e então o cabelo brilhava ao sol e eu esforçava-me para não me franzir e sorria. E tu que não querias rir para as fotografias e que eu achava tão lindo, olhavas-me de frente e esse olhar abalava as minhas entranhas. E, quando passeávamos na rua, ao passar, reparava como as mulheres te olhavam, buscando os teus olhos. Sempre evitei tentar perceber se aceitavas esse olhar. Era-me indiferente. Eras, então, meu e isso a mim bastava.

Procurávamos, por esses dias, um recanto só nosso e, por isso, percorríamos estradas desconhecidas, aceitávamos oferta de casas amigas. Passávamos horas de total descoberta, de doce intimidade, em camas que não eram as nossas, em casas que não nos pertenciam, ouvindo música escolhida por outros. E, no entanto, nessas tardes de amor e desejo, nós estávamos num mundo que era só nosso, alheados do movimento da rua, alheados de tudo. Éramos só nós, dois jovens amantes, felizes, despreocupados, inocentes, destituídos de sentido de pecado. Horas de felicidade sem mácula. 

O tempo passou. 

E passámos a receber a manhã juntos, tantas manhãs, tantos dias, tantos anos. 

E passeamos à beira-mar, tantas tardes, tantas noites, e ainda continuas a querer fotografar-me de frente para a luz e eu já não estranho quando não te ris nas fotografias e ainda não quero saber se recebes o olhar das outras mulheres. Quero lá eu saber.



[Noites de frémito, manhãs apaziguadas. Sigamos, pois, até ao poema de Rui Caeiro e depois, corpos em festa, Mahler, a grande música]

À beira-mar, mesmo rente ao Tejo


                                 Quando a manhã se insinua
                                 e os corpos, obstinados, não querem
                                 e não deixam e mais e mais
                                 se escondem dentro da cama até
                                 ao sufoco bom do fim da noite...
 
                                 Coisas que só sabemos de ouvir dizer
                                 manhãs assim não conheceremos nunca
                                 já que temos o amor, o desejo e mais
                                 nada, tempos pouco tempo e mais nada
                                e depois disso ainda a fome

                                que sempre nos sobra ou sobrevém
                                Quanto ao mais - dormir, acordar
                                 juntos, passear à beira-mar, envelhecer
                                juntos como faz toda a gente
                                - ora esquece mas é.


                                [Mais um poema de Rui Caeiro in 'O Quarto Azul e outros poemas']
                               

6 comentários:

  1. Mais um poema magnifico!
    Mais um poeta singular!

    Leitura obrigatória, sem dúvida .
    Luísa sobe a Calçada

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    1. Olá Luísa sobe a Calçada,

      Gosto muito deste poeta. Poemas simples, directos, muito autênticos, muito 'masculinos', diria eu.

      Suba, suba, suba a Calçada, Luísa.

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  2. ERA UMA VEZ07 março, 2012

    Desamor

    Ela esperou o dia inteiro
    as mãos frias e suadas
    quem sabe hoje ele vai ligar
    afinal há tanto tempo que ameaça
    como se faltasse um pouco mais de nós
    apenas um quase quase nada
    pra voltar

    Oito de março
    é sempre nome de mulher
    ele há-de ouvir na rádio
    ele vai saber
    e não...
    não pode ter esquecido
    cada momento divertido
    ardente
    cada vez que a gente
    se abraçou a ver o mar

    e o dia foi andando devagar...

    Seis da tarde
    parece haver festa em cada florista
    eles, formais, alguns muito aprumados
    outros impacientes
    (enjoados)
    outros sem jeito arriscam uma graça

    "Rosas vermelhas é o que sai mais
    mas há narcisos, lírios do campo e tantas outras"
    balbucia fatigada a rapariga
    enquanto amarra mais um laço
    e limpa as mãos ao avental

    e ela espera
    pacientemente...
    em silêncio chega a sua vez
    E a senhora? O que é que vai ser?
    (até que enfim)
    É só dizer

    Quero aquela orquídea branca provocadora transparente
    linda de morrer...
    E é só?
    Sim
    É para oferta?,
    Claro! É para MIM

    E esta mulher de novo vencedora, destemida, ousada, florida
    desfilou finalmente pelas praças e ruas da cidade
    como se fosse muito muito amada...

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    1. Erinha,

      Não sei se está por aí a tempo de me responder ainda hoje. Posso usar este seu poema como o meu poema hoje aqui no Ginjal? Gostei imenso e é mesmo apropriado para o dia em que vai ficar visível.

      Vou ali para o UJM e depois volto aqui a ver se tenho a sua autorização.

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  3. ERA UMA VEZ07 março, 2012

    Claro que sim. É uma honra.

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    1. Esqueci-me de perguntar se prefere que use o seu nome ou o Era uma Vez. Já aí não deve estar. Vou usar o Era mas, se preferir o nome eu amanhã troco. Gostava de usar o seu nome, pois sei que não tarde vai ser uma Poeta muito conhecida e assim eu já aqui levo algum avanço ao publicá-la...

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