Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 março, 2012

O sangue tornou-a feliz de uma felicidade errante e quente

 
Em que momento é que o sangue se soltou e que um grande alívio sobreveio? Já não sei precisar. 

Eu tinha dores, muitas dores, todo o meu corpo se contorcia de dores e eu queria sentir essa dores, queria conhecer, sem disfarces, a sensação mais pura, mais nobre, mais animal. Vozes atentas queriam socorrer-me e eu afastava-as. Transpirava, a cama alagada, as dores quando vinham tornavam-se avassaladoras e o meu ventre era uma montanha prenha de vida. Depois romperam-se as águas, a cama ainda mais se alagou e as dores ainda mais fortes vieram. Eu suspirava de dor. Não gritava. Mas arfava, impacientava-me, estava muito calor, as horas passavam e eu tinha tantas dores.

Já era quase fim de tarde, numa total exaustão, dores, muitas dores, e todo o corpo se revolvia, contraía, e eu já nem sabia se conseguia suportar. O corpo parecia rasgar-se, despedaçar-se e já eu temia não resistir a tantas dores. 

E então, depois, veio aquele momento em que uma vida nova manifestou a sua vontade, a vida que vivia mansa dentro de mim quis soltar-se e as dores foram mais fortes e eu toda, já quase sem forças, mobilizei a já quase inexistente energia para deixar que todo o meu corpo se abrisse, para que essa nova vida conseguisse libertar-se. 

E então veio o sangue, e então veio um corpo e eu vi sair de dentro de mim um pequeno ser, ensanguentado, que alguém pousou no meu peito. E esse pequeno ser, ainda com o calor morno do meu ventre, ainda ligado ao meu corpo, abriu os olhos, olhou na minha direcção e eu afaguei-o com desvelo, a mãe que afaga a sua cria e beijei-o, meu amor pequenino, e nem sei se senti o sangue, se senti o sabor mais antigo, sei apenas que estava feliz e que a calma mais perfeita tomava lentamente conta de mim. 

Duas vezes. Uma mulher parindo os seus filhos - eu cheia de amor.



[Convido-vos, agora, a acompanhar-me. Passemos pela parede pintada rente ao rio, detenhamo-nos com cuidado junto a outro belo poema de José Alexandre Caldas Ribeiro e, a seguir, vamos sentir a harmonia da música de Brahms.]

Pintura num muro do Ginjal, mesmo em cima do Tejo


                        A boca nomeia o exacto momento em que o impacto soltou o sangue
                        e surgiu a intensa calma do tempo a passar
                        Há ainda sangue
                        Saltou da montanha à justa
                        Hesito repor o tempo que falta
                        O sangue tornou-a feliz
                        de uma felicidade errante e quente
                        Sobreponho os lábios à passagem do sangue
                        Traz um sabor antigo


[Poema de 1990 de José Alexandre Caldas Ribeiro in 'A água que nos move', da editora Azual e cuja leitura recomendo]

4 comentários:

  1. Querida UJM

    Parabéns por aproveitar este tema (forte) do sangue canalizando-o para esse instante, esse momento em que tudo pára e se dá o milagre do nascimento. Dois momentos, não é? Descreveu-os de tal maneira que nos dá a noção exacta de que são instantes transcendentes e penso que nada se lhes compara.

    Vou seguir a sua sugestão de leitura.

    Bom fim de semana. Isso, não quer dizer que não passe de novo por aqui ou pelo'UJM'.

    Beijos

    Olinda

    ResponderEliminar
  2. Querida Olinda,

    Ao ler o poema senti-o muito dentro de mim. E o meu pensamento levou-o até aos dois momentos do nascimento dos meus filhos.

    Não quis anestesias (tinha medo que alguma coisa corresse mal e que as crianças pudessem ser afectadas e achei que, se tudo o que é animal tem filhos de forma natural, porque precisaria eu de anestesias?) e, logo por pouca sorte os partos foram complicados, foram induzidos e as crianças 'não desciam', tiveram, em ambos os casos, que ser puxados. E foi a mesma coisa das 2 vezes! Foi mesmo uma coisa do além mas, enfim, mal, finalmente, eles saíam, era uma alívio absoluto, uma felicidade sem limites. E quando o médico os pôs em cima de mim, ainda com o cordão, e eles todos sujos, com sangue, e eu, sem me importar por isso, lhes mexi, os beijei, foi uma alegria como não há igual.

    E lembrei-me disto ao ler este poema.


    PS: Viu no poema um pouco mais abaixo, no dia 28 de fevereiro, 'Calcorreando...' do mesmo autor, que o próprio lá deixou um comentário? Fiquei tão contente.


    Um beijinho, Olinda!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Minha querida

      Muito emocionada por esta partilha. No meu caso, no nascimento da minha filha, foi de cesariana por pouca dilatação. Lembro-me que quando acordei o médico disse:'Dª Olinda, tem aqui uma linda menina!' E eu disse algo de que nunca consegui lembrar-me. Fico com a impressão de que perdi momentos irrecuperáveis...

      Vou voltar ao post e ler o comentário. :)

      Beijinhos

      Olinda

      Eliminar
    2. Querida Olinda,

      Perdeu esse mas há a vida inteira para o recuperar. Por muito que cresçam, serão sempre os nossos meninos e a ternura pelo sorriso, o desvelo por tudo, a preocupação sempre presente, tudo isso se prolonga por cada dia da nossa vida. E depois o mesmo com os meninos dos nossos meninos, tanta ternura sempre.

      Um beijinho, Olinda.

      Eliminar