Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 março, 2012

A minha pátria é onde o vento passa, o meu desejo é o rastro que ficou das aves

 
Eu ia a passar na estrada que desce para o rio quando olhei para lá do muro e vi, lá em baixo, o meu amor que passava no seu barco.

De longe vi que ele olhava na minha direcção, procurava-me. E, então, pareceu-me vê-lo a acenar-me. Meu amor. Sem pensar subi ao muro, abri as minhas longas asas e voei.

Falo agora como se me estivesses ainda a ouvir, apetece-me falar contigo.

Passei sobre o casario, passei sobre o cais, cheguei ao rio e vi-te a sorrir. Olhavas para mim, não te espantavas, apenas sorrias, contente por eu querer estar junto a ti, my love.

Rodeado de bichos estranhos, homens vestidos com polos gant, barbeados e penteadinhos, lá estavas tu, barbudo, salgado, despenteado, tisnado. Lá estavas tu, meu homem do mar que não te importas de estar molhado, que gostas de mexer nas cordas, que te sujas com óleo, que gostas de ver o horizonte, que gritas o meu nome, que adornas o barco buscando os jardins onde sabes que me acolho, meu pirata maluco que atravessas mares, furas ondas, rasgas nuvens para me procurares, para me achares.

E eu, doida por ti, logo que te vejo passar no teu veleiro, voo e vou e sobrevoo e tu, doido, doido, my love, soltas francas gargalhadas, agarras nos teus amigos, atira-los ao mar, impiedoso, e ris, e uivas ao vento e, então, eu desço devagarinho, e tu agarras-me com doçura, despes-me  e enrolas-me nas velas, e o teu desejo é salgado e dizes que são as minhas penas que são salgadas e rimos e amamo-nos, meu pirata mais doido, e esquecemo-nos da nossa vida em terra porque o nosso desejo segue o rasto das aves e não segue nenhum outro mandamento.



[Pois. Mas nada como conhecer o verdadeiro pirata. Sophia e Ravel, o pirata e os jeux d'eau é já aqui a seguir.]

Lá vai o meu pirata, o único homem a bordo do seu barco (os outros não contam,
vão amarrados aos remos) - avistado no Tejo a partir da Boca do Vento


                                         Sou o único homem a bordo do meu barco.
                                         Os outros são monstros que não falam,
                                         tigres e ursos que amarrei aos remos,
                                         e o meu desprezo reina sobre o mar.

                                         Gosto de uivar no vento com os mastros
                                         e de me abrir na brisa com as velas,
                                         e há momentos que são quase esquecimento
                                         numa doçura imensa de regresso.

                                         A minha pátria é onde o vento passa,
                                         a minha amada é onde os roseirais dão flor,
                                         o meu desejo é o rastro que ficou das aves,
                                         e nunca acordo deste sonho e nunca durmo.


['Pirata' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Mar - antologia', selecção e organização da filha Maria Andresen de Sousa Tavares]

10 comentários:

  1. Cara UJM:
    Boa fotografia, mesmo ao gosto de Sophia.
    E que sugestivo devaneio o seu:

    Bela visão, simples devaneio, pura evasão para o amor e a paixão.
    Fugir ao real, esquecer a recessão
    E ninfa metamorfoseada render-se ao pirata!

    E troquemos-lhe as voltas …
    Luísa sobe a calçada

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  2. Caríssima Luísa subindo a calçada, tal como eu, a desoras,

    A ninfa rendeu-se ao pirata, diz bem, pulou o muro, voou, louca de desejo. Mas não será também que o pirata perdeu a cabeça, afogou amigos, quase virou o barco, loucura atrás de loucura apenas para ter uma mulher que voa nos seus braços?

    E claro está: enquanto voo e me entrego nos braços de piratas que atravessam o Tejo não estou a pensar no Relvas ou no Alvarito. Não faço uma boa escolha?

    (Esta de eu trocar o Relvas por um pirata do Tejo é boa...! Tomara é que ele não seja ciumento)

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  3. Poema louco, minha amiga, louco louco! :))
    E como gosto de ver como a sua pena desliza (no caso a tecla) ao saber de tudo e de coisa nenhuma, de cabelos ao vento, de ar doidivano, voando ao encontro do pirata despenteado e tisnado, o único homem no seu barco, no veleiro de velas enfunadas, enfrentando e vencendo adamastores, vencendo sereias outras, guardando-se para esse momento ímpar.

    A loucura passou por aqui e eu com ela. E adorei esta companhia e faço-lhe vénia...

    E a Sophia, a marcar o ritmo.

    Feliz noite, minha amiga.

    Beijos

    Olinda

    P.S. 'O ar doidivano' é inspiração da imagem, linda, do seu blog. Aquelas duas a correrem, seios ao léu, destrambelhadas..Picasso? Pouco surreal...:))

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  4. Olinda,

    Na procura diária que faço de um poema atraem-me muito os que são assim, loucos, desbragados, livres de preconceitos e de amarras. Acabo de os transcrever e, seguindo-lhes o rasto, aí vou eu, também sem rédeas.

    Gosto imenso destas mulheres de Picasso. Fazem-me lembras também as mulheres de Herberto Helder que correm na noite. Mas as do Herberto Helder são, de alguma forma, mulheres mais sofridas que, depois, correm livres. Estas aqui, de Picasso, acho que são mais do que isso, são mulheres que quase voam, livres, doidas, que se alimentam da mais pura fruição.

    Depois de um dia de reuniões e viagens e canseira só mesmo coisas assim para me voltarem a pôr nos eixos (sabendo-se que os meus eixos são os rastros das aves...).

    Um beijinho, Olinda e bons voos!

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  5. Querida Jeitinho:
    Não estava a pensar em Hemingway, quando escreveu isto?
    A foto, lá vem Sisley de novo, à minha ideia.
    Sophia, "Fada Oriana", "Menina do mar", a minha Sophia, com um poema lindo.
    Beijinho.
    Maria

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    1. Mary,

      Não estava, não senhor, depois de um jantarinho rápido, estava a espairecer depois de muitas horas seguidas a trabalhar e a falar de trabalho. Ontem tinha sido um dia carregado, com muita concentração requerida, muito tempo de viagem, enfim, estava estafada e, em dias assim, preciso de arejar ideias e, nessas alturas, deixo entrar o ar e escrevo o que me vem à cabeça.

      Escolhi aquele poema, depois escolhi esta fotografia, lembrei-me de quando a tirei e vi o barco tão bonito lá em baixo, fotografei focando ao longe de modo a desfocar o muro e, então, ao escrever saíu assim. É libertador escrever assim, é como quando pinto sem pentar no que estou a fazer. Descansa-me a cabeça, sabe?

      Um beijinho, Mary.

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  6. A minha pátria é onde o vento passa, diz sophia, belo verso, sem duvida.
    hoje, dia mundial da poesia, seria tambem caso para dizer, a minha patria é a poesia.
    mas fernando pessoa disse que a sua patria era a lingua portuguesa.
    Onde ficamos, então?

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  7. A minha pátria é a língua portuguesa; a minha casa é a poesia.

    Pode ser?

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  8. vbendo bem, não há contradições nem oposições mas
    sim, melhor a minha casa é a poesia, mais pessoal e intimo. Quem gosta de poesia pode viver com os seus poetas em casa.

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    1. Num mundo de palavras, jardins reservados ou casas íntimas que acolhem as palavras que se juntam em poemas. Fora destas casas e destes jardins as palavras desarrumam-se e andam à solta em conversas soltas, em prosas avulsas.

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