Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

22 março, 2012

És, talvez, como eu uma alternadeira de palavras

 
Depois de um dia de trabalho numa torre de vidro transparente, venho para aqui, junto ao rio, e fico passeando, percorrendo os mesmos caminhos de outras como eu.

Passa um veleiro, voam as gaivotas e eu olho o rio, pensando em palavras que, mais tarde, sem pensar, aqui me ofereço (e vos ofereço). 

É por amor ao rio azul, aos veleiros brancos, às magníficas gaivotas que por aqui ando e é por amor às palavras que aqui escrevo. Não faço dinheiro com as palavras, não danço por dinheiro, não fotografo por dinheiro, não faço amor por dinheiro. Faço o trottoir tal como as outras, as gaivotas, seguem o seu rasto no céu, e também não é por dinheiro.Vigiamo-nos, transparentes e humanas, pensamos em devastados amores, em secretas traições, emoções proibidas, escondidas. Mas tudo por amor.

Somos também como tu, leitor(a), que por aqui andas, percorrendo os caminhos do meu pensamento, vigiando o que escrevo, o que penso, o que sinto. 

Vivemos os dois, eu e tu Leitor, em união de facto. Estimamo-nos, não passamos um sem o outro, inseparáveis, amigos, amantes de palavras. Mas, apesar da ligação profunda, intensa, que nos une, eu saio todos os dias para colher novas palavras, palavras que trago depois para a mesa, como se tivesse andado a ganhar dinheiro para o nosso sustento.

Alternadeira, sou uma alternadeira. Alternadeira de palavras, amante de palavras.



[Caro(a) Leitor(a), continuemos a fazer este nosso trottoir. Desçamos até à beira do Tejo, palmilhemos os caminhos de Inês Lourenço e, depois, para nos apaziguarmos, deslizemos até ao concerto de Ravel, belíssimo.]

Em Cacilhas, o Tejo, um veleiro, gaivotas - este é o ar que respiro


                     Contigo, leitor, celebro
                     esta união sem facto, abro
                     este habitáculo, algumas gavetas
                     secretas para demorar contigo emoções
                     e escárnios. És, talvez, como eu
                     uma alternadeira de palavras, destas
                     que vendem no papel, os objectos
                     trucidados pelo olhar em lençóis
                     de falsa transparência e ficção
                     furtiva. Outras, mais reais
                     e mais humanas, professam
                     uma devastada arte de amar
                     e nós um devastado amor
                     à arte dos versos que ninguém
                     lê. Só nós nos lemos
                     uns aos outros, tal como elas
                     se vigiam sobre o trottoir.


                     ['Alternadeiras' de Inês Lourenço in 'Câmara Escura']
 

6 comentários:

  1. Cara UJM:

    Obrigada pelo seu amor às palavras, por gostar de palavrar, e sobre a mesa as partilhar.
    Palavras bonitas as suas!
    É a palavra escrita, umas vezes feita poesia que me ensina a compreender a alma humana.

    Gostei muito das suas palavras.

    Tenha uma bela e inspirada sexta feira .
    Luísa sobe a calçada

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    1. Olá Luísa, boa noite,

      Acabei agora a minha empreitada no UJM (e o que eu escrevi, senhores..) e, antes de me ir deitar vim aqui dar uma espreitadela.

      As palavras saem torrencialmente de mim, Luísa. Adoro palavras, sim, adoro escrever, adoro ler, adoro conversar, adoro ouvir conversar. E adoro partilhar.

      Obrigada pelas suas palavras e tenha também uma bela sexta feira.

      Agora vou dormir um bocadinho.

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  2. a terminologia do registo civil tambem pode ter o seu encanto e ser poetica, como no caso de viver em união de facto. Uma bonita forma de descrever uma situação a 2.
    por outro lado, falando do texto, tambem ali encontro bons achados como sair todos os dias para colher novas palavras e o servir essas palavras, frescas subentende-se, à mesa.
    quanto a percorrer os caminhos do pensamento, é algo mais preciso do que dizer só o meu pensamento ou corrente de consciencia, pois implica um mapa que nos ajuda a encontrar e não nos perdermos na paisagem das palavras.

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  3. Caro Patrício,

    Gosto sempre imenso da sua leitura, é aquilo a que, nas empresas, chamamos 'criar valor'. Eu leio o que me diz e vou reler o texto e já o leio melhor, com uma textura mais rica.

    Sim, quando escrevi que vou colher palavras para as servir estava a pensar no que faço aqui, leio poemas (mas, em sentido mais lato, leio textos, ouço conversas) e depois, aqui, ao escrever estes meus pequenos textos, estou, afinal, a dispor as palavras de outras formas, como se tivesse feito um cozinhado e depois servisse os pratos (coisa que, em sentido literal, gosto de fazer: cozinhar, pôr uma mesa farta, garantir que toda a gente come bem).

    Percorrer os caminhos do pensamento é mais do que caminhar, é mais do que compreender, é, passo a passo, seguir o fluxo certo das ideias, das palavras, é aprender a conhecer, é ter tempo para apreender e digerir o que se apreendeu. Qualquer coisa como isto.

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  4. UJM

    Aqui a companhia é de classe e consome-se manjar de reis, servido por quem tem a arte imensa de se apropriar das palavras, fazê-las suas e distribuí-las com uma grande generosidade, neste Ginjal que se renova todos os dias.
    Também lhe digo que nas fotografias, com que nos presenteia, com uma luz sempre diferente, um focar daqui e um desfocar dali, o rio, as gaivotas, os veleiros, a bela Lisboa, parecem multiplicar-se levando-nos numa viagem rumo à descoberta de algo muito belo, de um Hino à Vida.

    Minha querida, resto de um bom domingo.

    Bjs

    Olinda

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    1. Olinda,

      Que palavras generosas e tanto que elas me agradam. Eu que gosto de cozinhar e distribuir comida e ver que ficam satisfeitos e fartos, fiquei mesmo contente com estas suas palavras.

      E fico também muito contente que goste das minhas fotografias. Adoro fotografar. E dá-me muito prazer conjugar poesia, fotografia, palavras minhas e tudo envolvido em música. Ainda bem que gosta, fico mesmo contente.

      Obrigada.

      Um beijinho, Olinda.

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