Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 março, 2012

Doce demência arrancada à monstruosa inocência da terra

  
Dizes laranja e olhas-me com o suco a escorrer-te na garganta, dizes lua e eu vejo os teus olhos a cerrarem-se de suave amor.

Dizes doçura e apalpas a laranja e eu vejo que adivinhas como é doce o sangue que corre dentro de mim, dizes leveza e eu vejo que olhas com carinho as minhas brancas asas.

Dizes delicadeza e afagas a casca dourada da laranja e eu vejo que os teus braços se enternecem esperando por mim.

E, então, eu digo matéria e olho as cordas que vieram do fundo do mar, e digo inocência e vejo a terra, as pedras, os fios que vieram do ventre do mundo, do fundo do mar, e digo frescura e sinto a demência profana de todas as coisas que jazem aos nossos pés e vieram do fundo do mar e digo assombro e pego com veneração nas cordas entrançadas, nos restos de limos, nas cores esvaídas e em tudo o que o sol dourou e o fundo do mar amaciou.

Abraçamo-nos os dois, então, e perguntamo-nos se será isto a doce demência que une os seres inocentes que por aqui vagueiam. Talvez seja, talvez. E, então, sorrindo, cortas a laranja ao meio e o doce sumo dourado ilumina as nossas palavras.



[Desça um pouco mais, por favor, prove a laranja doce de Herberto Helder e siga depois até à grande música de Mendelssohn cuja música, esta semana, vai povoar este nosso espaço.]


No Ginjal, despojos de pesca, despojos de vida 
     
      
                Laranja, peso, potência.
                Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.
                A matéria pensa. As madeiras
                incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
                tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
                recebe soberania.
                E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
                A ferida que a gente é: de mundo
                e invenção. Laranja
                assombrosamente. Doce demência, arrancada à
                         monstruosa
                inocência da terra.


               [Laranja, peso, potência' de Herberto Helder]

2 comentários:

  1. cordas maritimas gastas pelo uso e esforço de segurar os barcos. esforço que as faz gemer nesse som tão caracteristico.

    quanto ao poema, lendo e relendo, vejo algo talvez simples: que a laranja fascina o poeta pelo seu gosto (leve açucar, golpe na lingua), pelo seu aspecto (peso, potencia), pelo processo de formação e parto do fruto (as madeiras incham, dão luz, apuram). É afinal um poema de sensualidade sobre algo inebriante que vem da terra.
    claro que os poemas não são literais e uma interpretação ou explicação é muito falivel.
    ps. deve haver um lapso de transcrição em sobre que será mais sobe. ou talvez no acento grave do à.

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    1. Havia um lapso seguramente mas agora não tenho aqui comigo o livro para poder validar mas acho que é 'sobe à cabeça'. Emendei e, quando puder, valido.

      Eu leio como a natureza ser mãe, prenha, dar filhos, frutos. E é um homem a falar, mostrando que quem ama a natureza, gosta de sentir nas suas mãos os frutos, a madeira, com a sensualidade de quem ama gente.

      Ou seja, no fundo, sinto o poema da mesma forma que refere.

      Mas tem razão: será que ele pensou isto ou apeteceu-lhe apenas brincar com as palavras à volta de uma laranja sumarenta?

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