Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 março, 2012

Diz-me com quantos traços se faz um rosto

 
Digo: olhos grandes que pousam como dóceis pássaros no meu rosto e logo voam, insubmissos, para o sulco que se abre sob o decote; boca vermelha, pequena e quente que se abre sobre a minha e mais não digo; sorriso malicioso e suave que me cativa, me doma, me provoca. Com estas palavras desenho o teu rosto?

Por aqui vou, passo rápido, aragem levantando o cabelo, rente aos pensamentos, rente ao rio que leva navios e eu, arisca, acompanhada pela tua voz, pela voz de todos quantos me segredam poemas de amor, vou sem ver quem me olha, apenas vejo o teu rosto desenhado com palavras. Existes ou inventei-te? Sabes que já nem sei?

Vou ter contigo, meu amor. Levo um saco, cheio de recordações, de promessas, de sonhos, e, quando chegar, vou dispor todas essas tão queridas peças sobre a mesa em que um ramo de flores secas, uma vela gasta, me acompanham há tanto tempo.

Se me visses, meu amor, tão rápida que vou, quase corro para ir ao teu encontro...! 

Em silêncio, sem palavras, apenas o teu rosto, as tuas mãos, o teu sorriso que me agasalha, apenas tu, meu amor e, enquanto aqui vou, ansiosa, já te pressinto, já sinto o teu calor amável. 

Depois entro em casa, chamo por ti, espero que lá estejas nem que seja por um breve instante, apenas um breve instante. Basta. Sentirei, nesse suave sopro, toda a respiração da eternidade.



[Sigamos, pois. O poema de Helga Moreira merece uma pausa demorada e, de seguida, uma música que me é muito querida, Clair de Lune. Continuamos, pois, com Debussy.]

No Ginjal, na rua rente ao Tejo, junto ao velho casario


                                Pouco depois volto a casa, fico quieta
                                e lembro
                                gestos, palavras, sem saber
                                se estou a dormir ou acordada
                                escuto vozes dos que passam
                                e levam sacos, artefactos, ruídos a mais
                                levam para casa

                                Eu sem qualificação para nada
                                cambaleante dia e noite

                                Aqui no agasalho da tua presença
                                entro no esquecimento de tudo isso
                                e redobro a eternidade
                                por um instante

                                diz-me com quantos traços se faz um rosto
                                já nãos sei o que disseste no outro dia
                                não lembro nem um som, nenhuma palavra


                                [Poema de Helga Moreira in Vozes e Olhares no Feminino]

7 comentários:

  1. Cara UJM:

    Gosto de Helga Moreira, em tempos longínquos fui próxima da sua irmã mais nova, não será por essa coincidência, mas pela poesia que nos transporta para o esquecimento e redobra "a eternidade por um instante" . Singular!

    “Eternizar instantes” , conceitos paradoxais ou apenas aparentemente contraditórios?
    O instante existe para perpetuar a eternidade, algo fora de tempo. E permita-me evocar Vinícius de Moraes o poeta do instante:

    “Amo-te afim, de um calmo amor prestante
    E te amo além, presente na saudade
    Amo-te, enfim, com grande liberdade
    Dentro da eternidade e a cada instante”.

    Também Debussy nos transporta para instantes de serenidade e paz que poderiam eternizar-se.

    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa 'nova e desenxovalhada' (...esta é boa!),

      Bela lembrança essa de trazer aqui Vinicius de Moraes e que bela forma de o designar, poeta do instante. Gosto imenso de Vinicius e gostei do excerto de poema que escolheu, bem a propósito do poema de Helga Moreira.

      Era bom se pudéssemos viver tranquilamente entre jardins, casas com belos recantos em que nos acolhêssemos a ler, a ouvir música. Era tão bom, não era? Com amigos em afáveis tertúlias poéticas, chá e sorrisos, na maior das calmas. Pode ser que me saia hoje o euromilhões.

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  2. a proposito de traços e rostos, lembrei-me do poema da almada negreiros sobre o desenho do menino a quem se pede que desenhe uma flor e que faz na folha uma serie de riscos aparentemente sem nexo, concluindo o poeta que aqueles riscos são os de que deus se serve para fazer uma flor.
    Com quantos traços se faz um rosto? Talvez o melhor seja pedir a uma criança.
    Não acredito que no outro dia ele tenha dito o numero.

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    1. Caro Patrício,

      Não conheço esse poema, tenho que ver se o descubro pois deve ser engraçado, essa ideia de as crianças fazerem os riscos com que deus fez as coisas.

      Pintar um rosto, quando se quer fazer tal e qual, é tramado. Já fiz dois retratos da minha filha e dá uma luta terrível. Claro que, quando vejo pinturas de pintores a sério, há sempre alterações face ao real. Mas talvez por eu ter pintado a minha filha, queria ver ali na tela, ali, tal e qual, a forma exacta como se ri, como arqueia a sobrancelha e, ao ver o retrato, era ela, sem dúvida, mas sempre com algum pormenor não exacto. E, no entanto, era apenas tinta, mais escuro para a sombra, mais branco para mais luz. Apenas mais ou menos tinta.

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  3. Pede-se a uma criança: desenha uma flor! Dá-se-lhe papel e lápis. A criança vai sentar-se no outro canto da sala onde não há mais ninguém.

    Passado algum tempo o papel está cheio de linhas. Umas numa direcção, outras noutras; umas mais carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas.
    A criança quis tanta força em certas linhas que o papel quase não resistiu.
    Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais.

    Depois a criança vem mostrar essas linhas às pessoas: uma flor!
    As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor!

    Contudo a palavra flor andou por dentro da criança, da cabeça para o coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas com que se faz uma flor, e a criança pôs no papel algumas dessas linhas, ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus lugares, mas, são aquelas as linhas com que Deus faz uma flor!

    Almada Negreiros

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    1. Que lindo!

      Muito obrigada!

      E tenha um bom dia, com muita poesia à sua volta!

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  4. é ficção o que leio de forma organizada, a poesia é para as pausas, pequenos momentos metidos aqui e ali. Mas a poesia é uma paixão, até porque é um misterio, apesar das emoções que provoca.

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