Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

29 março, 2012

A dança vem do colorir da mente, e o amor de um toque invisível

 
Assim és tu, mulher que olhas de frente os pássaros azuis; e assim sou eu que desço até ao rio cujo azul se adensa com o cair da noite.

Estremeces, sentindo que todas as partículas luminosas que atravessam os ares, carregadas do azul do céu e dos mares, desde as luzes do cais, às luzes da cidade, à grande luz azul do farol, até às luzes felizes que dançam dentro dos teus olhos, são formas de te aproximar do teu amor longínquo. Assim estremeço eu também.

Não chove e o ar está seco, as árvores estão secas, as pétalas secas tombam junto aos nossos pés atordoados e, lá longe, o meu amigo tem os olhos secos de tanta solidão. 

Mas o ar transporta estas invisíveis partículas azuis que trazem e levam dentro de si indizíveis afagos. As que hoje de noite pousaram no meu rosto, depois de dançarem em lânguidos e quase fantasmagóricos movimentos, atravessaram continentes, cruzaram um oceano, voaram lá de bem longe e trazem ainda o calor terno e bom do olhar sem lágrimas de um secreto ser que habita bem longe, um amigo silencioso, alguém que gosta de olhar as montanhas, de sentir os ventos, alguém que tem um bom e triste coração.

Hoje, de noite, quando vi o rio, já não havia faluas no Tejo e as gaivotas já dormiam no fundo do mar. Mas hoje, repito, hoje senti que um secreto e longínquo lamento, solto no vento, fragmentado em miríades de pequenas e luminosas partículas azuis, vinha dançando no ar, vinha colorir a minha mente, beijava-me com uma suavidade quase dormente.

Por isso, não deixes, amigo, não deixes que a ternura seque dentro do teu coração, deixa, deixa, amigo, deixa que as minhas palavras para sempre povoem o teu olhar.



[A rapariga da pele carmim - que, acima, se transformou na rapariga de pele azul - começou aqui abaixo, nas mãos de Ana Marques Gastão. A seguir, hoje, uma música de invulgar harmonia. É Mendelssohn a despedir-se]

Painel pintado numa parede da cidade de Almada, no Largo Gil Vicente, ex-Largo do Repuxo


                          Estremeço, estrangeira.
                          Estranhas, rodo as maçãs
                          entranhadas no rosto;
                          sujeito-as ao pó de arroz,
                          sabendo que, ao toque,
                          são início e logo fim,
                          laboriosa dança.

                          A dança vem do repouso,
                          de luminosas partículas,
                          e também do movimento,
                          mas já sem lamento.
                          A dança vem do colorir
                          da mente, e o amor
                          de um toque invisível.


                          ['Pele de Carmim' de Ana Marques Gastão in Adornos]

                     

4 comentários:

  1. Cara UJM:
    Bela e generosa a declaração de amor ao “amigo com os olhos secos de solidão”.

    Abraço da
    Luísa sobe a calçada

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    1. Luísa, subindo a calçada,

      Por vezes as palavras alinham-se de formas imprevistas, partículas luminosas que se agrupam em palavras inesperadas e, depois, como se o desassossego não bastasse, põem-se a caminho e voam, procuram longínquas montanhas, procuram seres solitários que vivem lá onde a luz do sol se esconde atrás do esquecimento.

      Um abraço, Luísa e obrigada.

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  2. Querida UJM

    Tudo perfeito! Paisagem povoada de seres harmónicos e de luzes mil assim como no 'Avatar'. E como tal, ao ler as suas palavras e os versos de Ana Marques Gastão acompanhada da bela imagem quase que me faltou o fôlego.

    E sei o quanto perco não poder vir aqui mais vezes, as vezes que eu desejaria.

    Beijos.

    Olinda

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    1. Olá Olinda,

      Há poemas que, imprevistamente, têm este condão: desinstalam-nos, revolvem-nos e, então, as palavras soltam-se, independentes de nós, buscam sozinhas o rasto dos pássaros, palavras e pássaros azuis que por aí vão, até alcançarem, lá longe, o parapeito de uma certa janela atrás da qual alguém, solitariamente, escreve também palavras voadoras.

      Este poema de Ana Marques Gastão teve esse efeito.

      Fico contente que tenha gostado.

      Obrigada, Olinda, e uma boa semana!

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