Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 março, 2012

Contento-me com cópias como o escritor se contenta com a falta de palavras

 
A mulher caminhava sozinha, vacilante, olhava o rio sem se deter, olhava em frente sem nada ver. O andar hesitante, o rosto ausente. Na relva molhada um pequeno pássaro preto brincava e, no cais, dois pescadores conversavam, sem pressa, mas a mulher não lhes prestou atenção.

Depois, vagarosa, escolheu um banco no meio da vegetação e sentou-se. Olhava em frente sem se interessar. Depois olhou para baixo, para as suas próprias mãos vazias, e ali ficou em silêncio. Não reparou no verde intenso que a envolvia, não reparou no céu azul, no rio que levava veleiros, no gato de olhos verdes que por ali se insinuava. Era como se todas as coisas tivessem perdido o sentido.

Passei por ela e ela também não me viu, estava fechada no seu mundo desabitado. Ninguém caminhava na sua direcção. Talvez a mulher quisesse ouvir uns passos iguais aos que antes a procuravam, talvez quisesse ouvir alguém, de longe, chamar o seu nome, talvez quisesse que alguém chegasse e lhe dissesse palavras de amor. 

Então ouvi uma voz que vinha dali, uma voz em surdina, uma toada, quase um pranto. Aproximei-me. E ouvi um murmúrio: 'Já quase não sei o teu nome. Já quase não sabes o meu nome. Já quase não sei o nome que dávamos ao nosso amor, Chamo-te e não vens. Não me chamas, não vens.' E depois repetia 'Já quase não sei o teu nome. Já quase ...'



[Neste dia de coisas diferentes, passeemos até ao jardim onde a escritora se debate com a falta de alguém que responda ao seu chamamento. Depois sigamos até à bela música de Mahler.]

No Jardim do Ginjal


                             Repito o teu nome. Até lhe perder o sentido.
                             Nas coisas forma-se outro nome.
                             Quem me ouvirá agora ao chamar-te?
                             Percebo então que o som dos cacos é uma coisa diferente
                             do som dos teus passos.

                             Contento-me com cópias como o escritor se contenta
                             com a falta das palavras.


['As Coisas diferentes' de Inês Fonseca Santos in 'As coisas', livro com uma cuidada edição e uma bela capa negra e ilustrações  de João Fazenda]
  

2 comentários:

  1. como pode o escritor contentar se com a falta de palavras?

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  2. Patrício, meu Caro,

    eu acho que o escritor é um farsante... Tanto finge (e não vou invocar Pessoa...), tanto inventa, que, às tantas, faz de conta que consegue prescindir das palavras...

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