Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 março, 2012

Aquele que o meu coração ama


Não sei escrever palavras de abandono. Aquele que o meu coração ama e todos os outros que anteriormente amei sempre me procuraram nas cidades, fora delas, nas ruas abandonadas ou no meio de multidões e sempre ao meu corpo ficaram presos. 

(De bons sentimentos não se escrevem grandes textos e é por isso que este é um texto tão curto.)

Mesmo quando me isolo no meio do rio, sozinha eu e o rio que aqui é mar, sozinha no meio deste silêncio líquido de tão azul, mesmo quando ele me vê de longe, me chama já cansado, e eu finjo que não o vejo, mesmo quando o ignoro e, mulher livre, ave louca, levanto voo e o abandono, mesmo assim ele espera que eu me canse, e, na volta, acolhe-me de braços abertos, um abraço morno e amante.

E, então, quando isso acontece, agradecida, eu peço-lhe que me dispa, que me tome, que percorra o meu corpo com os seus longos dedos, e que me retenha até que a manhã chegue não vá eu perder-me na ameaça da noite.



[É já aqui sabido que gosto bastante da poesia de Alice Vieira. Peço-vos portanto que, com muito carinho e disponibilidade, se deixem ficar um pouco na sua companhia. Logo abaixo La mer de Debussy.]

Avistada do ginjal, gaivota em pleno momento de levantar voo a partir de uma rocha no Trjo


                          Aquele que o meu coração ama
                          não encontra em lado algum
                          o incenso que de meus olhos rompe
                          para ensinar a prender o corpo das mulheres
                          abandonadas fora de horas
                          às portas da cidade

                          mas sabe que          para todas as distâncias
                          há uma ave enlouquecendo quem parte
                          antes do tempo
                          e a túnica que dispo entre os seus dedos
                          é a espada que os reis ungiram
                          para enfrentar a ameaça das manhãs
                          em que tudo acorda


                         ['Aquele que o meu coração ama, 2' de Alice Vieira in 'O que dói às aves']

&

Desesperando…

É a revolta que enlouquece 
Quem sabe que vai partir antes do seu tempo
Tendo lutado até ao sangramento 
Das vísceras,
Da boca, 
Da noite, 
Dos sentidos fechados, perdidos, 
Dos olhares longe parados,
Esperando…

Olhares,
Esperando,
De desesperança 
De quem nada pode fazer…


[Belo e sentido poema da autoria de J. Rodrigues Dias]

4 comentários:

  1. Cara UJM:
    Alice Vieira eximia contadora de histórias e grande versatilidade, de uma alegria e energia contagiantes.
    Sem dúvida uma mulher apaixonada cuja poesia de amor parece que nos está a ler !

    abraço da
    Luisa sobe a calçada

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    1. Luísa da calçada que sobe,

      A Alice Vieira começou por ser, para mim, a autora de livros que a minha filha adorava, depois passou a ser uma cronista genuína, mais tarde descobri a poeta das palavras que cantam, das palavras transbordantes de afecto. Uma mulher fantástica, muito autêntica. Gosto muito dela.

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  2. Cara UJM:

    Este "post" e uma partida antes do tempo, há alguns dias, ditaram, no caminho sinuoso das palavras:

    Desesperando…

    É a revolta que enlouquece
    Quem sabe que vai partir antes do seu tempo
    Tendo lutado até ao sangramento
    Das vísceras,
    Da boca,
    Da noite,
    Dos sentidos fechados, perdidos,
    Dos olhares longe parados,
    Esperando…

    Olhares,
    Esperando,
    De desesperança
    De quem nada pode fazer…

    Évora, 2012-03-14

    J. Rodrigues Dias

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    1. Caro J. Rodrigues Dias,

      Ainda estou aqui, os olhos colados ao seu poema.

      Não sei se se estava a referir à perda de um familiar meu há pouco tempo ou se se está a referir a alguma perda sua (tomara que não; além disso, acabei de escrever um comentário no seu blogue e só agora aqui vi este; tomara que não seja aquilo que estou a pensar)

      Seja como for: é sempre muito doloroso, uma vida que, no fim, já está cheia de morte, uma presença já cheia de afastamento.

      Não consigo agora escrever mais.

      Mas vou puxar o poema para o post e vou colocá-lo a seguir ao poema da Alice Vieira.

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