Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

20 fevereiro, 2012

A ti eu voltarei após o incerto calor de tantos gestos recebidos

 
Habito a minha casa como habito o meu corpo. Gosto de me deslocar às escuras percorrendo os corredores, os quartos, como se percorresse as minhas veias, as minhas vísceras. 

Enfeito a casa como me enfeito a mim, eu e a minha casa, eu e a minha pele. Passo e vejo-me num espelho: esta sou eu, este é um bocado da minha casa. 

Ali naquela cama estiveram os meus filhos deitados sobre mim, deitados no meio de nós, brincando, rindo, e eu feliz e quente por baixo dos seus risos macios.

Ali, junto à janela, naquela cadeira de madeira com uma almofada amarela, me sento eu tantas vezes a falar com os que estão longe e que, naquele momento, se sentam à minha volta. 

Aqui nesta mesa estão tantos livros carregados de poemas. Alguém um dia os escreveu e eu, guardadora de vozes, aqui os tenho, irreverentes, meus amigos que saltam das estantes para se virem aninhar aqui junto ao meu colo. Nesta mesa em que escrevo está uma grande parte de mim.

Quando eu me for, ah quando me for, porque um dia eu irei, não vou poder levar nada comigo, nem estas molduras cheias de sorrisos felizes, nem esta luz dourada aqui sobre mim, nem a cadeira que era da minha avó e na qual agora me sento.

Mas eu acho que muito de mim vai aqui ficar. Nestas almofadas grandes e macias que estou agora a olhar, nesta bailarina colorida que, suspensa, rodopia à minha passagem, na ampulheta de vidro que marca o escorrer do tempo, num leque antigo, nos meus queridos livros, em tudo isto está tanto de mim.

Sou eu, silenciosa, intangível, eu já renascida, eu na minha casa.



[Sigamos agora, meus amigos, até à Casa Branca de Sophia e, logo a seguir, o piano de Schumann espera por nós]

Harmonia e um suave colorido nesta composição que se encontra
à porta de um dos restaurantes da ponta do Ginjal


                                              Casa branca em frente ao mar enorme,
                                              com o teu jardim de areia e flores marinhas
                                              e o teu silêncio intacto em que dorme
                                              o milagre das coisas que eram minhas.

                                              A ti eu voltarei após o incerto
                                              calor de tantos gestos recebidos
                                              passados os tumultos e o deserto
                                              beijados os fantasmas, percorridos
                                              os murmúrios da terra indefinida.

                                              Em ti renascerei num mundo meu
                                              e a redenção virá nas tuas linhas
                                              onde nenhuma coisa se perdeu
                                              do milagre das coisas que eram minhas.


['Casa branca' de Sophia de Mello Breyner Andresen in 'Vozes e Olhares no feminino']
  

2 comentários:

  1. Tão apropriado...
    Certíssima e justa, esta evocação poética tão doce.
    Dona Sophia, senhora dos suaves saberes...

    As casas são as conchas do ser anfíbio que somos.

    Obrigada, 'T'.
    :)

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  2. Sempre por cá, Margarida, para a receber - ou nesta casa junto ao mar ou na outra onde às vezes me enfureço com um jeito menos manso, ou onde o correio me alcançar, estarei sempre de porta aberta para receber os meus amigos.

    Um beijinho para si, Margarida hoje menina-sereia (fica mais poético do que menina-anfíbia...)

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