Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

05 fevereiro, 2012

A tarde cúmplice deixou um nó de pedra

 
Avançavas no passeio, distraído, mãos nos bolsos, talvez fosses por exercício físico, talvez para passar o tempo, ou então, sem o saberes, para ver se me encontravas. 

Eu estava cá em baixo, como sempre tirando fotografias, e via-te recortado contra a grande falésia, que andar fantástico - pensava. Um homem viril e solitário percorrendo, sem pressa, os caminhos que te acabariam por levar até mim.

Eu observava-te e disparava, uma, duas, três vezes, só o rosto, menos zoom para apanhar o tronco, menos zoom para te apanhar de corpo inteiro. Eras, pois, uma bela cabeça recortada num fundo ocre e dourado, um torso descontraído e um corpo inteiro que caminhava junto à praia - e que eu guardava dentro da minha máquina

Quase junto ao fim do caminho vi-te hesitar, ou prosseguias e descias para a areia ou davas meia volta e continuavas a andar, agora em sentido contrário. Enquanto te focava pensava: desce, anda.

E então desceste. Passaste pelas rochas, desceste a escada, atravessaste o areal e puseste-te de frente para o mar. Sempre na minha mira. Focava-te e disparava. Eu caçadora furtiva, tu, pequeno, dentro da minha máquina.

E não saías dali, absorto, olhando o mar, e eu a pensar: vem, anda, quero ver a cor dos teus olhos. Mas não, não te mexias. 

Então, já impaciente, avancei eu. Baixei a máquina e avancei. Uma caçadora que abandona a sua arma e que avança para outra forma de caça, agora à mão. Via-me a avançar, os pés enfiados na areia, pausada, convicta, a pegada bem vincada, uma fêmea que avança, determinada, pronta a agarrar a sua presa. E só pensava - tomara que não te vás embora antes de eu te alcançar, queria ver-te de perto, queria ver o teu olhar, queria ver como pousavam os teus olhos em mim, a caçadora.

Quando estava a chegar perto, tornei-me silenciosa, passada leve, e, então, agora com o coração a bater forte, pus-me ao teu lado. Olhaste-me surpreso. Um olhar longo e infantil.

Mostrei-te a máquina, disse-te que te tinha fotografado, pedi-te que me deixasses fotografar-te de perto. Sorriste e disseste que sim. Apontei a objectiva, foquei, disparei, andei à tua volta, disparava sem parar, quase numa vertigem. Por fim já sorrias mas mantiveste-te imóvel. Entregaste-te e eu possui-te, agora já tinha o teu olhar para o poder decifrar.

E então a brincadeira fez com que o mundo desaparecesse, puxei-te pela mão e fomos para um recanto na praia, ficámos só nós, abraçámo-nos, beijámo-nos, despi-te a camisola, despi a minha. E a maré ia e vinha e tu ias e vinhas e eu recolhia-me e entregava-me, e a tarde baixava as cortinas, e a luz abrandava e nós nada dizíamos, o que haveríamos de dizer?, metáforas?, e o teu abraço era quente, e a tua boca era doce, e a tua pele era macia. E eu pensava - era de ti que eu estava à espera, há tanto tempo à tua espera. Mas não disse nada e tu também nada dizias. 

Depois levantaste-te, vestiste-te e eu fiz o mesmo. Estavas embaraçado, não sabias que seguimento dar à história. Até que eu te disse - e se ficasses? Olhaste-me, admirado. Expliquei-te - para estarmos, para o sexo, para um filho, para nada.

Ficaste. 



[Meus amigos, uma história de amor à beira mar requer uma música especial - começa hoje a minha semana dedicada a Prokofiev e não podia ter melhor inauguração, com o jovem Domingos António*, um talento. ]

* - Obrigada, Cara Amiga Era uma Vez!



                                    Foi o céu que conseguiu este caminho
                                    Errante sem aviso prévio até à falésia rara
                                    Desnudo encontrei um corpo branco de linho
                                    Um sinal um gesto com Barthes e câmara clara

                                    Sobre a areia o mundo emudeceu quase encanto
                                    Num caminho falso de rápido desejoso e cru
                                    Caímos sobre as pedras o mar branco
                                    Despimos sentimentos palavras roupas até ao nu

                                    Tocámos ao de leve uma metáfora na palavra além
                                    Nadando nos braços abraços bocas faces
                                    Olhando peixes na marginal daquela maré de vai e vem

                                    A tarde cúmplice deixou um nó de pedra numa escada
                                    Quando disseste sem hesitar ... e se ficasses?
                                    Para estarmos, para o sexo, para um filho, para nada


['A tarde cúmplice deixou um nó de pedra' de José-Alberto Marques in British Barthes]
  

2 comentários:

  1. Caro Patrício,

    Que engraçado o seu comentário...

    Ternura, diz. Talvez. Eu diria mais curiosidade, descoberta, acaso bem sucedido, determinação, não sei. Mas ternura, sim, também, tem razão, pensando bem, ternura, sim. Tem graça que não tinha pensado nisso mas tem razão.

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