Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 fevereiro, 2012

Onde mora a memória obscura, onde esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra


No mais fundo de mim sei que há muito esqueci o que me move. 

Lembro-me, mas muito remotamente, que, em tempos, eu tinha pernas fortes, músculos desenhados, tendões elásticos, tinha braços que sabiam abraçar, um rosto que gostava de se ver nos olhar das mulheres, sei que tinha uma voz que diziam poderosa e quente. Sei que isto é verdade.

Agora fecho os olhos, tentando ver dentro da minha obscura memória um homem que por aqui corria, passada larga, coração ardente, como um cavalo impaciente, como um conquistador. Era eu a caminho do mar. Outras vezes era eu a caminho da mulher que comigo se escondia no fundo do barco, rente à ondulação nocturna deste tão amado rio.

Agora estou velho, cansado e tu já não existes, minha mulher de pele salgada, agora és apenas um corpo que se desfez na terra. E eu agacho-me aqui, sem forças, aspirando o ar do mar, mal sentindo estes meus membros silenciosos, este rosto fechado onde o olhar há muito escureceu, estas mãos vazias, tão vazias, e espero que um cavalo correndo neste chão de pedra, rente a estas casas pobres e vazias, passe, voando, e me leve para o fundo do mar.



[Não me apeteceu retomar Liszt que foi tão tristemente interrompido. Hoje começo a semana dedicada a Schumann e o som do piano faz-me falta neste momento. Convido-vos, pois, a acompanharem-me. É logo a seguir ao belo poema de António Ramos Rosa.]

Velho pescador rente ao Tejo, no Ginjal


                               Onde mora a memória obscura, onde
                               esse cavalo persiste como um relâmpago de pedra,
                               onde o corpo se nega, onde a noite ensurdece,
                               caminho sobre pedras na minha casa pobre.

                               Não conheço esse lago, não fui a esse país.
                               Mas aqui é um termo ou um princípio novo.
                               Com a baba do cavalo, com os seus nervos mais finos
                               reconstruí o corpo, silenciei os membros.

                               Não se estancou a sede, no mesmo caos de agora,
                               mas a língua rebenta, as vértebras estalam
                               por uma nova língua, por um cavalo que una

                               a terra à tua boca, e a tua boca à água.


['|Onde mora a memória obscura...|' de António Ramos Rosa in Antologia pessoal da Poesia Portuguesa de Eugénio de Andrade]

2 comentários:

  1. poema muito bem construido embora não aprecie foneticamente o inicio: mora a memória; ou talvez fosse isso mesmo, o choque sonoro, que o poeta pretendeu.

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  2. Caro Patrício Branco,

    Gosto muito deste poema, identifico-me com este tipo de pensamento (em que memórias, palavras, cavalos, gatos, aves, rios, árvores, tudo constitui uma unidade que faz sentido).

    A ligação de mora com a memória a mim também não me soa bem se lida assim. Mas se separar 'onde mora' de 'a memória obscura' já me soa muito bem, cavando ali na separação. Não sei se dá para me fazer entender. Eu leio 'onde mora' em decrescendo e faço uma quase imperceptível pausa e depois subo para 'a memória obscura' e soa-me mesmo a um buraco onde caem os pensamentos que ali ficam esquecidos.

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