Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

13 fevereiro, 2012

(...) como se ouvisse enfim a língua mais oculta


Nesta manhã fria, afasto-me da gente que avança ruidosa. Desço até à praia, piso a areia molhada, e vou em total solidão, vencendo o silêncio que me rodeia, a caminho do mar.

Comigo vão os meus pensamentos, ideias que se desenham e se esvaem, e eu caminho, lentamente, sem vozes à minha volta, apenas o mar revolto, as ondas que se debatem vigorosamente. Olho o ar azul, tão límpido, sinto o ar frio, aspiro as gotas que vêm da água batida, da espuma que se evola no ar .

Depois dirijo-me até às rochas, procuro o perfume dos limos de veludo verde, a maresia presa às algas macias e cheirosas. 

E então um bando de gaivotas desce dos ares e começa a voar à minha volta e eu pasmo, dançam, dançam, leves, elevam-se e deslizam no ar, rodeiam-me, amparam-me. São anjos, senhor!

Com as suas longas asas brancas, soltando os seus gritos, brincam, pousam, esvoaçam, e eu sinto que me convidam e, olhando-as assim, livres, belas, sinto-me integrada no seu modo de vida e quase percebo o que dizem quando falam a sua língua mais oculta, a língua da liberdade total que eu tanto gostaria de falar, a língua na qual os sons se misturam de forma encantatória formando palavras aladas.



[Não é a voz das minhas amigas gaivotas mas é o som da música de Liszt - a seguir ao poema, encontrará o piano de La campanella, um som tão leve como um voo branco]



                                     Canta-me ave
                                     arcanjo
                                     com o bico puxa
                                     a farpa que desponta
                                     do meu cérebro

                                     Por montes e vales
                                     transmigre o canto
                                     e quem o escute
                                     se sinta
                                     recompensado
                                     revulsionado
                                     como se ouvisse enfim
                                     a língua mais oculta


                                     [A lume. II. de Luiza Neto Jorge in poesia]

8 comentários:

  1. Cara UJM:

    O mundo das palavras é muito curioso, imprevisível, quase autónomo...

    Deste seu post, de que gostei, acabaram por brotar as palavras seguintes, inesperadas, que lhe deixo, quase em jeito de pequeno poema:

    Corrente

    Queremos a liberdade das gaivotas
    Pelos caminhos que pensamos ir abrindo
    Pelo tempo que marcamos como o nosso…
    Com a ilusão de um remo numa mão
    E de uma voz de comando na outra, de nós,
    Vamos em correntes por encostas de acasos
    Que nos levam diversamente ao mar infinito profundo,
    Sem fim, caminhos desfeitos, derradeiro destino,
    Onde se perdem em pequenos restos,
    Em ondas fugazes, invariavelmente,
    Os sinais trazidos de ontem
    Nas memórias escritas
    Do caminho livre
    Na corrente…

    Évora, 2012-02-14

    J. Rodrigues Dias

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  2. Caro J. Rodrigues Dias,

    Hoje não estou boa para 'falar'. Contudo, este seu poema tocou-me particularmente (tocam sempre mas hoje foi especial pois uma pesooa muito querida chegou ao seu 'derradeiro destino').

    Agradeço-lhe muito, pois ainda que o não soubesse, estas palavras que aqui escreveu são as que eu hoje gostaria de ouvir ao pensar nessa pessoa (que gostava de descer encostas para chegar ao mar)

    Muto obrigada.

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  3. Um Jeito Manso,

    Hoje vim em descoberta do Ginjal.
    Palavras? Para quê? Por mais que goste de brincar com elas, por vezes são desnecessárias.
    Mas, mesmo assim, quero que saiba que...
    Gosto da beleza, da paz, da delicadeza que transmite.
    Parto apaziguada!
    Li o comentário que publicou acima.

    Pela perca, pela mágua, pelo desgosto, um abraço sentido.

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    1. Querida Teresita,

      Li ontem o seu comentário mas não tive disposição para escrever o que quer que fosse. Peço desculpa. Hoje já por aqui ando a ver se me inspiro, se tenho vontade de escrever. Mas também estou cansada e a precisar de dormir. No entanto, não quero deixar de agradecer as suas palavras tão gentis.

      Muito lhe agradeço o carinho. Obrigada!

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  4. poema que me parece ter algo de doloroso, triste, de desanimo.
    Bonito, claro, mas de alguem que desistiu.

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  5. Caro Patrício,

    Leio agora, de novo, o poema e não sei se é triste ou se fui eu que escrevi um texto triste sobre ele. Não sei. Neste momento não consigo o distanciamento para o perceber.

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  6. Cara UJM:

    Posso usar a fotografia nos "Traçados sobre nós", com um "link" para aqui?

    J. Rodrigues Dias

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    1. Mas é claro. Mas, olhe, no outro dia, os fulanos da Google devem ter andado a mexer no programa de upload de fotografias que me aparecia tudo mal e andei a mexer, sem saber que o problema não era meu e, às tantas, pareceu-me que não se conseguia tirá-las. Se isso lhe acontecer, diga-me que eu a envio por mail.

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