Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 fevereiro, 2012

Calcorreando o nosso corpo chegamos a um limite que transposto significa o preço da coragem

Há um sopro longo que me percorre o corpo inquieto, há um sopro que me inquieta, há um sopro suave que me afasta da quietude morna destes dias tão iguais.

Corro os olhos pelas paredes gastas, percorro as janelas abertas, aspiro o vento solto, deixo-me levar.

Há um rio largo e suave, silencioso, cúmplice, e há os veleiros brancos que por lá deslizam, mastros ao alto, elegantes e suaves. E há este vento húmido, íntimo, que esconde as velas brancas entre as árvores, e esconde a gente que lá vai, e há as grandes aves brancas que gritam impacientes e há os gatos que olham com suspeição quem por aqui passa levado pelo vento.

Os telhados estão abertos, o céu entra dentro das casas, as paredes têm cores de outros tempos e não há ninguém; e então eu vejo uma porta aberta para a qual o vento me empurra.

Entro e misturo-me com as gaivotas, com as redes dos pescadores, com o cheiro do mar e tu vens atrás de mim, calcorreaste o mesmo caminho e agora calcorreias o meu corpo, e juntos transpomos um a um todos os limites, e juntos murmuramos os sons do mar e há amor e coragem e loucura nos nossos gestos lentos e há carinho no olhar manso das gaivotas.

A mesma loucura que nos leva depois a voar, abraçados, sobre o mar.



[Tocada pelo espírito de Chagall, voo sobre o mar - mas convido-vos a voar comigo. Passemos primeiro pelo belo poema aqui já a seguir e pousemos depois a tempo de ouvir Brahms, a bela música de Brahms]

No pequeno jardim do Ginjal, veleiro avistado entre as árvores

 
                          Há um murmúrio longo
                          a pôr-se do lado do vento
                          Vê-lo é difícil
                          talvez por entre as velas do mastro

                          Calcorreando o nosso corpo
                          chegamos a um limite que transposto
                          significa o preço da coragem

                          Assim estamos
                          com a dificuldade de entender
                          o que há para ver e o já visto

                          Então tapamos os olhos
                          e seguimos em frente
                          até ao mar


[Poema de 1986 de 'A água que nos move' de José Alexandre Caldas Ribeiro da editora Mariposa Azual]

10 comentários:

  1. Olá, UJM

    Um conjunção perfeita: o rio, o mar, o vento. O rio, a estrada que conduz ao mar e este o leito ideal para barcos de velas enfunadas a descobrir novos mundos, calcorreando caminhos nunca vistos e também sabores e também o corpo, máquina perfeita de todas as sensações. Calcorreando sem rumo... tem o encanto dos encantos.

    Beijos e um excelente dia.

    Olinda

    P.S. Há mais abaixo um texto seu, a partir de Camões, que eu virei ler, de certeza. :)

    Bj

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    1. Ando mesmo a sério por estes caminhos que são tal como os descrevo (o rio, as gaivotas, casas velhas, esventradas, sem telhados, paredes gastas) - e tenho sempre o mesmo prazer. E, por isso, quando aqui chego a casa, é sobre isto que mais gosto de escrever, esta rua estreita à beira do Tejo em que andam as gaivotas (e eu).

      Obrigada, Olinda. Um beijinho!

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  2. Cara UJM:

    Gostei muito do poema, da fotografia e do "Calcorreando...".

    Obrigado pela partilha.

    J. Rodrigues Dias

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    1. Caro J. Rodrigues Dias, Matemático e Poeta,

      É com grande prazer que, diariamente, aqui arranjo este bocadinho de mim, escolhendo o poema, a fotografia, escrevendo - como se estivesse a arranjar uma pequena jarra com flores, um castiçal com uma vela cheirosa, uma moldura com sorrisos dentro.

      É um prazer para mim e fico contente quando sinto que esse prazer soa bem a alguém que está aí desse lado.


      PS: Já podei as minhas parreiras (tenho uma bolha na mão, porque não gosto de usar luvas e os braços arranhados porque estava calor e andava de manga curta) mas já lá estão aparadinhas. Tomara que rebentem bem...!

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  3. Não sabia que esta água tinha descido até ao Tejo, ao Ginjal...que não conheço. E poder partilhar esse prazer. Permitam-me que enderece os parabéns à autora do blogue. E àqueles que entendem que os poemas quando saem do autor pertencem a todos e lhes dão a vida.

    Um abraço, do autor do poema

    José Alexandre

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    1. Caro Poeta José Alexandre,

      Fiquei tão surpreendida com este seu comentário... Na livraria pega-se num livro, a capa é bonita, o título sugestivo, depois folheia-se, gosta-se do que se percebe nessa leitura superficial, depois traz-se para casa. Depois, à noite, escolhe-se um poema, transcreve-se para aqui, escolhe-se uma fotografia que tenha alguma coisa a ver, depois escreve-se um pequeno texto inspirado no poema - e, nisto, a gente pensa que está sozinha, aqui a escrever para ninguém, sem saber se o autor é gente de verdade ou se é alguém abstracto, alguém a quem as palavras foram sopradas pelos deuses.

      E eis que, de repente, o autor se materializa e me deixa aqui mesmo, neste recanto, um bilhetinho.

      Para si, como autor, também deve ser um pouco estranho encontrar aqui, fora de si, as suas palavras.

      Mas é isso, as palavras voam: voaram dos seus dedos e foram pousar no seu livro, depois voaramm do seu livro e vieram pousar aqui.

      Espero que tenha gostado de as ver aqui. Foi com todo o carinho que aqui as coloquei pois gosto mesmo muito da sua poesia (que desconhecia, nunca tinha ouvido falar de si).

      Também gostei da cor da capa, da paginação e, até, do curioso nome da editora. Parabéns.

      E muito obrigada pelas suas palavras (faz de conta que veio aqui autografar o seu livro...).

      PS: O Ginjal é pouco mais que uma rua degradada rente ao Tejo, o local de onde se tem das melhores vistas de Lisboa, um local que, para mim, é mágico.

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  4. Cara UJM:

    Obrigado pela simpatia das palavras.

    Porém, quanto a "Poeta", ainda não, apenas "Aprendiz de Poeta", como me apresento...

    Curiosamente, ontem, por acaso, encontrei um blog de uma escritora/artista brasileira, que não conhecia, com um poema meu (Vida) de uma "IV Antologia de Poetas Lusófonos", tendo na coluna direita o meu nome com um "link" para o meu blog. Enfim, simpatias de "Senhoras"!

    Quanto às parreiras, é claro que vão rebentar, em especial quando são carinhosamente tratadas com as mãos. Com as mãos! A propósito, no dia 11 de Fevereiro, publiquei nos "Traçados sobre nós" um texto que começava assim:

    Taça de vida

    Conheço da terra texturas, as coisas, as aradas,
    Cheiros como os de chuva de trovoada caída,
    Mãos nuas com a terra de segredos abraçadas,
    Mãos puras amassando o pão no chão da vida…

    ...

    Cito para acentuar as "mãos nuas" e "mãos puras"!

    Olhe, pequenos nadas...

    J. Rodrigues Dias

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    1. Caro José Rodrigues Dias,

      Hoje recebi aqui a visita de dois Poetas, a sua (aprendizes somos todos de tudo) e a do Poeta autor do poema que tinha escolhido. Dia grande para mim, portanto.

      Os poemas são uma linguagem intemporal, quase imaterial e voam das mãos dos poetas (como referi na resposta ao comentário acima) e vão parar onde menos os poetas podem esperar. E cada um faz a sua própria leitura e o poema vai ganhando novos sentidos. É isto uma das muitas belezas da poesia.

      Quanto às 'suas' mãos já lá fui ver.

      Quem gosta da terra, gosta de lhe mexer e de mexer em tudo o que nasce dela. Depois, chego ao trabalho (uma torre de vidro, moderna), olhos para as minhas mãos e mais parecem mãos de camponesa.

      Mas e o prazer de sentir, com mãos nuas, a vida que nasce do chão de terra...

      Pequenos nadas, diz? Não acho. A mim estas coisas trazem-me grandes felicidades.

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  5. E dizer, minha querida, que eu faço parte desses momentos, de palavras que voam das mãos de poetas,palavras que pousam em livros que são lidas e interpretadas por si, com esse talento imenso, tão natural, e que eu tenho a honra de seguir a apreciar... Momentos preciosos. :)

    Muito obrigada.

    Beijinhos.

    Olinda

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  6. Olinda,

    Pois é, as palavras dos poetas seguem o seu próprio percurso, voam, andam de mãos dadas com quem passa, e mudam de cor, e mudam de casa, e mudam de mãos e, no entanto, são sempre carne da carne de quem as trouxe à vida, o Poeta que as trouxe à luz do dia.

    Quando aqui coloco poemas que escolho e escrevo pequenos textos que os poemas me inspiram, é sempre com sentimento de agradecimento aos Poetas. Nunca lhes agradeceremos o suficiente.

    Obrigada Olinda pela sua presença, sempre tão em sintonia comigo, e pelas suas palavras sempre tão amigas.

    Um beijinho.

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