Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

12 janeiro, 2012

(...) regressar a deus como quem regressa aos homens

 
Mulher vestida de olhares, mulher de pele beijada, mulher que caminhas alheada dos que te olham e desejam. Mulher que te deitas e deixas que se deitem sobre ti e tu sempre alheada, mulher de coxas verdejantes, carnes que, atrás, se desembrulharam da sua nudez. E tu, mulher, mais doce, mais pura, melhor que muitas outras mulheres, avanças como se dormisses e não vês se é noite, se é dia, e deslizas e nem sabes se descalça, se desnuda, se vestida apenas dos olhares que a ti se colam. O cabelo cobre-te os ombros e nem sabes se é o cabelo que se soltou, se é o xaile que à tua pele se colou.

Ora corres as saias como cortinas, ora levantas as saias para que o sol te lamba, mulher desejada pelos homens e pelos deuses. Regressas, pois, a casa e vais limpa e pura, estrelas dentro da cabeça, ventos varrendo-te o corpo, desejável, tão desejada, sempre distante, sempre presente.

Regressas, pois, a casa e, uma vez chegada, ajoelhar-te-ás junto à imagem de um deus que é irmão de todos os homens e a esse deus te entregarás inteira, consciente, cheia de luz.



[Uma mulher assim, que desliza desnuda, deve ser guiada pela música dos deuses - deslize também até ali mais abaixo e verá qual a música e qual a sublime voz que guiam esta mulher]




                         Chegava coberta de migalhas como quem chega do pão.
                         Nessas noites em que escolhia muito bem os dedos
                         o penteado do xaile.

                         Chegava e chavam.lhe espinheira
                         por vir assim tão colada aos pés descalça
                         até aos ombros.

                         Nessas noites em que corria as saias e aprendia depressa
                         a desembaraçar-se dos olhos
                         a desembrulhar as coxas para a neve verdejante
                         a regressar a deus
                         como quem regresssa aos homens.


                         ['Cântico Cereal' de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]

6 comentários:

  1. muito bonita a ilustração de capa do blogue, bem como a fotografia ainda pensativa junto ao tejo mas já de costas para o rio, como que afastando-se depois de o ter contemplado e de ali ter pensado.
    Dali tem um quadro de mulher à janela, na mesma perspectiva deste, mas este não me parece o de dali, não consegui ler a assinatura do pintor.

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  2. Caro Patrício,

    Mas a luta que isto me tem dado porque esta gama de azuis é do pior que há. Neste computador vejo azulão, noutro já vejo roxo e ando para aqui a ajustar as cores e parece que nunca mais está ao meu gosto.

    É Dali, sim. Antes tinha uma da Paula Rego, também a ver pela janela mas não atinei com a cor do título que é justaposto. e antes tinha uma aguarela do Paulo Ossião mas ficava tudo com ar muito deslavado.

    Este aspecto gráfico é demorado e eu tenho sempre pouco tempo.

    Mas obrigada!

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  3. Olá, UJM

    Tanta coisa linda por aqui desde a minha última visita! Por 'coisa linda' quero dizer textos belíssimos na introdução de poemas cujos autores, a maior parte deles,não conhecia. E também se trata da Música com que este seu blog nos acarinha...Saio daqui revigorada e mais rica. Li num blog, há pouco, que hoje se comemora o Dia Mundial do Compositor. Aqui é todos os dias.:)

    Fiquei embevecida quando li este seu texto, da sensibilidade, da doçura que ele nos transmite e que faz reflectir e lançar um olhar atento sobre o que nos rodeia, sobre a Mulher, um Ser que se situa entre o céu e a terra.

    Gostei muito do poema e vou pesquisar sobre a autora.

    Bom domingo.

    Bj

    Olinda

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  4. Bom dia Olinda, olá!

    Fico sempre tão agradecida ao ler as suas palavras tão afáveis.

    Para mim é um prazer este 'exercício' que aqui faço, de escolher um poema, uma fotografia, escrever um texto, escolher uma música. Quando acabo, sinto-me bem.

    Eu gosto imenso de poesia (como dá para ver) e as secções de poesia das livrarias são aquelas em que mais me detenho. Folheio e, se gosto, não resisto. Claro que muitos poetas já são meus conhecidos. Mas as minhas escolhas, sendo eu uma absoluta leiga, são assim, fruto dos meus gostos. Pouco sei da biografia ou da bibliografia dos poetas. São seres cujo uso da linguagem me deleita.

    Adorei essa sua expressão de a mulher ser um ser entre um céu e a terra. Penso muito isso, eu também.

    Muito obrigada e tenha, a Olinda também, um belo domingo!

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  5. Cara Um jeito manso:
    Há palavras que têm o dom da maternidade. Nasceram das suas aquelas que amanhã, segunda, vou colocar nos “Traçados sobre nós”, a que chamei “Mulher da noite”. Agradeço-lhe por nascerem. Pensei pô-las (também) aqui, mas a hora creio que passou, por ter encontrado nestes dois dias problemas com esta caixa de comentários. Colocarei na minha mensagem um link para aqui.
    Boa semana.
    J. Rodrigues Dias

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    Respostas
    1. Ah, vou ficar a aguardar ansiosamente. Adoro isso, palavras que nascem de palavras. Assim acontece com estes meus textos que nascem dos poemas que escolho. Leio os poemas, transcrevo-os e, acto contínuo, sem pensar, sem me permitir tempo de análise, apenas quero a impressão espontânea, ponho-me a escrever a partir do que acabei de ler.

      Fico entusiasmada que consigo também aconteça isto, que de palavras lidas, nasçam palavras escritas.


      Esta coisa dos comentários da minha parte está ultrapassada. Instalei o Chrome e uso-o como browser em vez do Internet Explorer. Os problemas acabaram, era uma incompatibilidade, acho eu. Como estive a mexer no blogue, deve ter assumido algum novo formato que é incompatível com o IE. Coisas.

      Mas, assim, já consigo aceder e responder.

      Uma noa semana, para si também!

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