Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

17 janeiro, 2012

E no entanto chega luz, uma estranha, inesperada luz


É noite. Está prestes a acabar o meu dia. A sala está quase às escuras e eu, aqui, a escrever nesta pequena mesa redonda, quase envolta em escuridão, um pequeno ponto de luz sobre mim, e esta folha de vidro em que escrevo que também emana luz e escrever é tão bom para mim, escrever envolta em palavras das quais sai uma luz dedicada, cuja sereníssima claridade me abre para o universo.

Passo as mãos pelas teclas, afago as letras, sorrio com as palavras que se desenham aqui à minha frente, sei que daqui a pouco deixarão de me pertencer, sairão aqui deste meu ninho, vão fazer-se ao mundo, voarão, e irão depois pousar, simples, silenciosas, na casa de outras pessoas, nas vossas casas. 

Quando me vou deitar, apago primeiro a luz do pequeno candeeiro para que a luz azulada que sai do meu computador ilumine este recanto em que me recolho. E penso que são as palavras, as minhas e a dos meus amigos cujas casas eu visito à noite, que por aqui andam, iluminando a minha vida.

E amanhã, quando o dia nascer, e esta mesa estiver inundada da luz que vem dos lados do rio, eu sairei de casa e, andando na rua, sentirei uma leve aragem no rosto e saberei que são as minhas palavras ainda rondando a minha casa, ainda não totalmente libertas de mim.

Mas eu passo e ignoro-as, quero que percebam que já não me pertencem, que já são mais dos meus amigos que minhas e que podem, elas próprias, livres, vir a dar à luz outras palavras(*).




[Neste inverno suave, pensemos no verão e ouçamos a música feliz de Vivaldi; desça um pouco mais - depois do poema belíssimo (como sempre) de Pedro Tamen poderá ouvir cordas vibrantes plenas de luz]

No Ginjal, entrada onde há um arco que dá para umas escadas e para uma entrada de luz



                               E no entanto chega luz,
                               uma estranha, inesperada luz,
                               à catacumba onde estou vida
                               por força destas mãos.
                               Da matéria que afago à minha frente
                               irrompe ou brota uma solar,
                               uma ardente e sereníssima claridade,
                               de que me valho ao ver o universo,
                               vendo e vivendo os dias que passaram
                               e os que em nascer persistem.


                               (Poema 47. Pedro Tamen in 'o livro do sapateiro')
 

Crédito: Expressão inspirada nas palavras de J. Rodrigues Dias ao escrever num comentário que há palavras que têm o dom da maternidade.
  

2 comentários:

  1. Cara Amiga:

    Quando libertamos as palavras, num acto único, arrojado e irrepetível, elas ficam verdadeiramente livres. Não voltam, não são mais só nossas, para o bem e para o mal, mas são sempre uma imagem de nós, mesmo que nelas tentemos iludir-nos e iludir…

    Quanto à “maternidade”, agradeço-lhe a referência, mas não havia necessidade. Obrigado.

    J. Rodrigues Dias

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    1. Gostei do que aqui escreveu. Acha que são sempre uma imagem de nós mesmo que tentemos iludir-nos e iludir? Escrevendo eu aqui o que me ocorre no momento, de improviso absoluto, sem pensar, apenas guiada pelas palavras do poema que escolhi, estarei afinal a esconder-me atrás das palavras? Ou a expor-me através das palavras? Ou a fantasiar(-me)?

      Não sei. Vou tentar perceber.

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