Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 dezembro, 2011

Que mais fazer se as palavras queimam, cegam

 
Não é fumo, não, nem névoa, nem a neblina que vem do rio. Não. Está frio, sim, e há este suave nevoeiro, coisa ao de leve, um transparente tule mas não é nevoeiro, não.

Vem da água, dizes-me. E eu olho e digo-te que sim, que vem do rio mas que também vem da terra, das árvores, dos arbustos, das silvas, das ardentes sarças. Olhas e dizes, parece quetambém anda à volta dos gatos e eu vejo que sim mas também das rochas e tu chamas-me a atenção, olha, também à volta das gaivotas.

Depois insistes, parece mesmo fumo mas eu pergunto-te, mas então onde estão as chamas. E tu dizes que estão no olhar dos gatos e eu sorrio, inesperadas palavras vindas de ti. E vou atrás, vêm das asas das gaivotas e tu acrescentas, e das velas dos veleiros e eu abraço-te e digo, e vêm das nuvens e tu beijas-me a boca e depois dizes, e vêm da tua boca e eu tapo-a porque não quero que se percam no ar, são as tuas palavras.

E eu abraço-te e digo-te, deixa, deixa que ganhem vida própria as minhas palavras, deixa que voem, deixa-as, deixa-as ir. E então tu abraças-me e dizes, gosto tanto de ti, minha mulher feita de palavras.

E eu fecho os olhos, agradecida, porque alguém viu dentro de mim, alguém tocou as minhas palavras.



[Estamos na semana de Bach e eu até seria levada a pedir-lhe que desça um pouco mais, que ponha a música de hoje, Glenn Gould extraordinaire e que, só então, leia o poema de Ana Luísa Amaral, talvez também o que acabei de escrever, acho que as palavras voarão mais alto]


Jardim do Ginjal, sobre o Tejo, Lisboa encantada do outro lado


                                         Que mais fazer
                                         se as palavras queimam
                                         e tanta coisa em fumo em tanta coisa
                                         sarças ardentes do avesso
                                         o fogo em labaredas que mais
                                         fazer

                                         Que mais fazer
                                         se nem a água tantas vezes
                                         descrita      abençoada
                                         mas de mais e cristã
                                         também castigo

                                        Mas como nem castigo
                                        nem as nuvens de fumo na sarça
                                        do avesso
                                        se tudo no avesso
                                        das palavras

                                        que não chegam
                                        – mas cegam


                                       ('A impossível sarça' de Ana Luísa Amaral in Vozes)
  

2 comentários:

  1. Olá, UJM

    Este seu texto é um dos melhores que já li. Sentimento, sensibilidade, aliados a um saber escrever que nos toca. E quando as palavras queimam temos de fazer como faz: deixá-las escorrer, correr, soltá-las ao vento ao encontro do nosso receptáculo de eleição.

    Em contraste,no poema de Ana Luísa Amaral encontrei o poder das palavras que não chegam, mas cegam...

    Bom Natal.

    Beijo

    Olinda

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  2. Olinda,

    As suas palavras são sempre tão calorosas, tão agradáveis de ler. Muito obrigada.

    Sabe que eu adoro escrever, e gosto de escrever sem censura interna, sem filtros. E às vezes as palavras têm vida própria, é como se eu não soubesse bem o que estou a escrever. E no fim não me apetece reler, parece que estaria a invadir um território muito pessoal e quase alheio.

    Não sei bem explicar este fenómeno. É como quando pinto. Não sei o que vou pintar, não sei bem o que estou a pintar mas, afinal, as coisas aparecem.

    E ainda bem que há quem goste.

    Sabe que, quando pinto, as pessoas depois começam a dizer-me que estão a ver ali uma fonte, a sombra de não sei o quê, e eu olho e parece mesmo e eu nem tinha reparado e, no fim, descubro coisas que apareceram sozinhas.

    Vá lá a gente perceber como funciona a nossa cabeça, não é?

    E depois de escrever isto, viro para o Um Jeito Manso e atiro-me ao Passos Coelho e desanco no governo e já parece que é outra pessoa.

    Mas sou sempre eu.

    Aproveito paar comentar também o que escreveu no outro, sobre Bach. Fascinante esta música e como consegue incorporar uma outra dimensão nas palavras, não sente isso?

    Um beijinho, Olinda e, se não nos falarmos antes, que tenha um bom Natal, que seja uma bela festa e um sentido encontro.

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