Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 dezembro, 2011

O seu corpo pertence à terra, entrega-se ao ritmo subterrâneo das raízes e conta o tempo que falta para a noite

 
Esta mulher está no centro da paisagem mas não vê o que a cerca, não vê a suave neblina, não vê o dia que desponta. Esta mulher vive de noite, e então, quando os gatos sobem às janelas, quando os navios deslizam silenciosos, quando as restantes pessoas se retiram, quando a fria bruma desce sobre a cidade, enchendo-a de sombras, a mulher deixa que as suas raízes escorram até o rio, até à terra. Com as entranhas quentes, fumegantes, com o coração latejante, com as mãos em brasa, escrevendo como uma louca, esta mulher entrega-se ao silêncio e deixa que se evolem os seus mais secretos sentimentos.



[Esta mulher precisa de música, é parecida comigo esta mulher. Sigamo-la até ali mais abaixo, partilhemos com ela a Sonata Arpeggione de Schubert.]
 

À beira Tejo, a Ponte ao fundo, o Ginjal do outro lado
- mulher ocupando o centro da paisagem -
                

                     Na luz indecisa que deixa adivinhar
                     a manhã, a névoa que impregna o ar
                     desfaz-se quando os dedos de fogo do sol
                     a limpam, restituindo ao dia
                     a sua transparência. Mas a mulher que
                     ocupa o centro da paisagem não
                     se apercebe da mudança. O seu corpo
                     pertence à terra, e entrega-se
                     ao ritmo subterrâneo das raízes, ouvindo
                     o canto que regula a passagem
                     das estações. Um desejo de sombra apodera-se
                     da sua alma; e conta o tempo que falta
                     para a noite, para se entregar ao silêncio
                     do mundo, no lento eclipse
                     dos sentimentos.


                     ('Paradoxo natural' de Nuno Júdice in A a Z )

 

4 comentários:

  1. adequada a fotografia que ilustra o poema, poema que fala da mulher que ocupa o centro da paisagem, mas que tambem refere o desejo dela de que seja noite. Aliás o poema tem uma unidade de tempo, manhã de bruma, meio dia ou tarde de sol e noite - o eclipse ansiado pela mulher.
    Na legenda descritiva da fotografia acrescentaria pois no fim "e o centro da paisagem."

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  2. O poema é um poema elíptico, percorre um arco de tempo que se pretende fechado e define bem a sensação que se tem quando se anseia que chegue a hora em que se é mais 'eu', a hora em que os outros se retiram. Gosto deste poema.

    Adoro fotografar, sabe, tenho milhares de fotografais e todos os dias faço este exercício de escolher um poema, uma fotografia, escrever um texto que me seja inspirado pelo poema.

    E, claro, intercalando com um música.

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  3. e escolher ou tirar uma fotografia baseada no poema, palavra, imagem, musica.

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  4. Vou na rua e olho as pessoas (ou, às vezes, a paisagem) e, à sorrelfa, capto as suas expressões, apanho-as distrídas, descontraídas, apanho-as a olhar ou em comunhão com a paisagem. Montes de fotografias.

    Depois, à noite, quando escolho um poema, escolho também de entre as fotografias mais recentes, qual a que melhor ali se encaixa. A seguir escrevo um pequeno texto a partir do poema ou da própria foto.

    Sou muito imediatista, muito intuitiva, incapaz de escolher um poema e depois ir para a rua à espera que me apreça uma situação que ilustre o poema.

    Comigo, que faço tudo a correr e com uma tremenda falta de tempo, tem que ser assim.

    Está a ver, são quase 2 da manhã, daqui a pouco tenho que estar a pé, e só aqui posso voltar de novo amanhã tardíssimo. Tudo sempre a correr.

    Paciência. Tenho trabalho e tenho que agradecer isso aos céus. Daqui por uns anitos já poderei fazer as coisas com maior sossego, pelo menos assim o espero.

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