Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

20 dezembro, 2011

Não sou a imagem que buscas fixar, na objectiva do espanto tu não me vês

 
Dizes, vou fotografar-te e eu sei que queres tanto fazê-lo. Dizes, vira-te para a luz e eu faço-te a vontade, fico de frente para a luz. Dizes, vira-te um pouco, quero-te quase de perfil; eu viro-me, assim está bem?

Olhas pela objectiva e dizes, estás tão séria, sorri, e eu olho-te nos olhos, por dentro da objectiva e digo, não consigo.

E tu olhas-me nos olhos por fora da objectiva e eu recebo o teu olhar nu. Eu, que estou virada para a luz, entrego-me nua, banhada pela luz, sem te ver. Não sorrio, não te vejo. Dizes-me, então, não feches os olhos e eu digo-te que é da luz mas que foi apenas um bater de pálpebras. E tu dizes, não estás aí.

E eu digo-te que estou, que fixes a minha imagem. E tu insistes, não estás cá.

E eu, então, fecho os olhos e penso, não, não estou aqui. A minha quietude esconde o meu voo, estou a voar, parti sobre o rio, não me vês porque não podes, guarda o teu espanto.

Esta que aqui vês, que tem o meu cheiro, que tem os meus olhos, que tem o meu corpo, esta que ocupa um espaço que antes era meu, esta não sou eu. Eu há muito que parti, eu há muito que estou onde não me podes alcançar. Mas não faz mal, eu finjo que estou aqui. Vou sorrir, dispara agora.



[E então a flauta de Bach começa a vibrar enchendo este grande espaço. Desça um pouco para recolher as notas, para segurar as palavras, para registar o instantâneo.]




                                    Não sou a imagem que buscas fixar,
                                    na objectiva do espanto tu não me vês
                                    porque não podes.
                                    A quietude é uma velocidade vertiginosa,
                                    entre um oscilar de pálpebras e outro
                                    orbitei o universo
                                    regressei ao ponto de partida.

                                    E não são meus
                                    os aromas de bosque que ocuparam
                                    o espaço onde antes fui eu.


                                    ('Instantâneo' de Soledade Santos in 'Sob os teus pés a terra')

2 comentários:

  1. impossivel de agarrar ou fixar essa figura que fala na 1a pessoa no poema. ela mesmo o reconhece

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  2. Intangível, imaterial. Isso mesmo.

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