Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

30 dezembro, 2011

Era já noite mas eu corria, corria cegamente pela página fora

 
Vou levada pela aragem fresca que vem do rio. Aos poucos as pessoas vão rareando. É quase noite, daqui a instantes já é mesmo noite e eu já estou sozinha. Passam pequenas embarcações iluminadas no rio, riscos de luz atravessando a escuridão com cheiro a maresia.

Percorro esta rua e não sei o que procuro. Talvez um rosto que saia do escuro, talvez uma voz que suba do rio, talvez um corpo nu esperando por mim no fundo de um veleiro, talvez uma luz, talvez.

E, então, vejo que sob os meus pés começam a nascer palavras. Emocionada detenho-me. Um caminho feito de poesia. Por cada passo que dou, nova palavra se desenha. E eu vou lendo Tejo, gente, pertence, minha terra, meu mundo e, então, começo, quase em silêncio, quase sem ver, a dizer as palavras que nascem à minha passagem. Eu, mulher feita de palavras, percorro as linhas dos poemas que alguém, um dia, dispôs gentilmente sobre uma página.

Por estas linhas de palavras vou, guiada por uma estrela invisível, silenciosamente andando pela noite dentro.




[Às palavras silenciosas dos poemas deverá juntar-se a beleza imaterial da música que abaixo poderá encontrar - um raro momento de beleza, como poderá confirmar]


Anoitecer à beira Tejo, num caminho feito de palavras em Belém


                               Era já noite mas eu corria
                               corria cegamente pela página fora.
                               Ou era talvez a rua. Corria
                               para um encontro
                               não sei ao certo de que
                               de quem.
                               Um nome um rosto
                               um corpo nu deitado no abismo.
                               Mas era uma estrela
                               que me
                               guiava.
                               Era um sismo
                               era um vento.
                               Ou talvez a palavra. Ou talvez a palavra.
                               E por isso eu corria
                               loucamente corria pela noite dentro.


                               ('Um sinal' de Manuel Alegre in 'Livro do Português Errante')
 

4 comentários:

  1. manuel alegre sabe muito bem construir a poesia. Neste poema há uma palavra utilizada 3 vezes, frequente na poesia dele, o "talvez", que lhe dá um toque de misterio, de indefinição ao que enuncia.
    o uso da rima ocasional mas sempre bem colocada tambem é eficaz, neste caso são os abismo/sismo, vento/dentro, guiava/palavra.
    Claro que ele corria era atrás da palavra que escreveria (e se leria)na página.

    interessante fotografia amarela com sombbra do fotógrafo.
    Bom 1ro de Janeiro, bom ano.

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  2. Caro Patrício,

    Gosto da forma como lê o que eu leio.

    Concordo com o que diz, claro, há um lado épico ou cenografável (não estou a conseguir definir bem) na forma como Manuel Alegre nos conduz ao longo dos seus poemas. Mas, seja como for, o que ele escreve resulta, soa bem, leva-nos com ele.

    A sombra é da fotógrafa, não do fotógrafo... (todas as fotografias são minhas. Esta foi tirada no próprio dia em que aqui a coloquei, um ambiente mágico de luz amarelada e eu, ali sozinha, percorrendo as palavras com a Torre de Belém iluminada ao fundo)

    Um bom 2012!

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  3. o seu texto que serve de apresentação ao poema de manuel alegre é o melhor comentario que o poema podia ter pois se trata duma forma de glosa ou desenvolvimento só possivel quando se decifrou e apreciou o dito poema. Aliás, o texto em prosa tambem pode (deve) ser lido como um poema

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  4. As suas palavras quase me comovem. Fico-lhe muito agradecida.

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