Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

28 dezembro, 2011

É preciso ir além do deslumbramento, como se foi além da dor

  
Como falar desta terra tão amada? Como dizer-te que a minha amada cidade é quase intangível, é luminosa e branca, tem castelos e vielas, becos e escadarias, tem matas e palácios, e guarda mistérios, indizíveis segredos, tem jardins de rara beleza, tem lagos, estátuas, fados e má vida, tem ruas com tectos de jacarandás, tem cais onde se fazem juras de sangue e escadas que descem para um rio que a banha, um rio largo e suave que tem veleiros e grandes navios que vão para o outro lado do mundo? Como dizer-te?

Chega-te aqui e olha comigo. Vês este manto leve e transparente que a cobre? Vês como é bela a cidade branca que aqui se desdobra para nós?

Vem, assiste a este raro deslumbramento, senta-te aqui em silêncio e olha comigo. Não arrisquemos errar nas palavras. Que palavras poderia eu usar para te dizer como é tão grande esta minha devoção, como explicar-te que é quase dor isto que sinto?

Não, não arrisquemos manchar a sublime transparência desta cidade sonhada, não, deixa que guarde as palavras. Deixa que algum poeta as escolha. É que, sabes?, esta é a cidade dos poetas, por aqui se desenha a rota para a poesia. Fica, pois, junto a mim e rezemos, que divina e bela é a cidade que guarda todos os sonhos dos poetas.



[Depois do belo poema aqui abaixo, um momento sublime: os violinos trazem-nos o som dos deuses, ou dito em prosa, de Beethoven]


Numa manhã de neblina, veleiro branco numa atmosfera quase imaterial,
o Tejo e Lisboa envoltos em tule branco


                                          Houve terras que de tão sonhadas
                                          não puderam ser ditas senão em prosa lenta,
                                          isto é, em poesia.
                                          É preciso ir além do deslumbramento,
                                          como se foi além da dor
                                          (e é mais difícil,
                                          porque o deslumbramento dura menos
                                          e distancia).

                                          Nessas terras o comércio das palavras
                                          fez-se entre olhares desdenhosos e juras
                                          de sangue.

                                          Foi tão estranho seguir
                                          esta rota para a poesia...


('O caminho das Índias' de Luís Filipe de Castro Mendes in 'Lendas da Índia')
 

5 comentários:

  1. Divina e bela é a cidade como plena de magia é a sua prosa que segue a própria rota da poesia...
    Fico encantada sempre que aqui venho.

    Votos de um Ano Novo com tudo de bom, junto aso seus.

    Beijinhos.

    Olinda

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  2. Olinda,

    Muito obrigada pelas suas palavras. Sinto-me sempre amplamente recompensada ao ver as suas palavras de apreço (e nem sei se as mereço - mas sabem-me tão bem que fico com elas, não as largo!).

    E um 2012 também muito bom para si e para os que lhe são queridos: saúde, sorte, tudo de bom!

    (E, já agora, que nos continuemos a encontrar por aqui e pelo Xaile)

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  3. há 2 reparos ou 4 comentários que faço a este poema: o 1º refere-se à poesia como sendo prosa lenta ou o inverso. Vou reflectir nisso e ver o que consigo apurar.
    o 2º é a palavra distancia que li primeiro como nome ou substantivo e não percebia, encalhei na leitura (não liguei à falta de ^) só depois vendo que era verbo.
    o 3º que o leio como uma composição sobre a nostalgia e um percurso que se fez (em direcção à poesia, entendo) com a cumplicidade ou ajuda de camões. Finalmente, 4º, há ainda o contraste entre a terra sonhada e a terra violenta, do desdem e do sangue.

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  4. Caro Patrício,

    Como eu gosto dos seus comentários. eu sou uma leiga, uma intuitiva, repentista, leio, gosto, absorvo, a ideia entra em mim e, a seguir, escrevo um texto inspirada no que leio.

    O meu Caro que é entendido, certamente, analisa, racionaliza e, ao fazê-lo 'em voz alta' leva-me a uma segunta e mais detida análise.

    Sobre as palavras terem que ser ajeitadas em poesia (como se a poesia fosse uma prosa lenta) quando o deslumbramento é demasiado, eu acho uma ideia fantástica - o ter que separar pausadamente as palavras, o ter que as escolher religiosamente, o ter que prolongar o espaço entre o texto para acompanhar o tamanho do encantamento

    Sobre o deslumbramento causar distanciamento - entendo que, quem se deslumbra, fica 'agarrado' ao motivo do encanto, fica lá, afasta-se de local de partida. Se eu me apaixono por uma paisagem, vou procurá-la mil vezes e distancio-me dos locais anteriores

    Sim, acho também que o autor viajou até longe, até terras longínquas, encantou-se, tornou-se rigoroso nas palavras, enveredou pelo caminho da poesia

    Sim, o fantástico contraste de ambientes em que floresceram as palavras. Tanto que se sonhou e tantas palavras poderiam ser escritas soobre a ilusão do lugar e, afinal, ao chegar lá, vê-se que esse maravilhoso palco das palavras é também uma terra onde se mata e morre no exercício do comércio.


    Li bem, agora que leio com a sua preciosa ajuda?

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  5. não, não sou entendido, distraio-me simplesmente a analisar ou reflectir sobre o que leio, ficção, poesia, teatro, etc, e tomo notas.
    Aliás da troca de ideias (trabalho de equipa) é que nascem as melhores ideias ou soluções.
    p.ex. a "prosa lenta" que é poesia tive a solução quando me fala no separar pausadamente as palavras, no ter que as escolher religiosamente. É isso mesmo o significado da "prosa lenta=poesia" do poema de lfcm.
    Aliás a sua interpretação de todo o poema é completissima e deu-me muitas luzes de leitura.

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