Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

09 novembro, 2011

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio

  

E então vieste. Atravessaste os mares e voaste até a este rio que corre vagarosamente para o mar. Talvez te sentes, sozinho, olhando o mar. Talvez te sentes sozinho pensando que nenhuma mulher esperou por ti, nenhum abraço te esperou. Voaste para uma cidade fria, triste, escorrendo chuva como lágrimas e não tinhas ninguém à tua espera. O rio corre, a vida corre, e tu limitas-te a ver a vida a passar. Nem uma mão que enlace a tua, nem um sorriso pousando carinhoso no teu rosto. A vida corre e tu não vais com ela, tu ficas sentado sozinho a uma margem desolada, numa cidade triste e escura. Talvez penses que, se quisesses, terias beijos, carícias, talvez penses isso. Mas não, não terias isso, terias apenas o afecto de quem sabe que a vida às vezes nos reserva a surpresa de nos desvendar uma alma sensível que toca a nossa alma sensível. Nem beijos, nem carícias - terias apenas a convergência de um olhar solidário na direcção deste rio que tanto amo, apenas as palavras de quem ama as palavras, terias apenas o meu sorriso. Não te iria desassossegar, claro que não. Quando te sentares, aí onde te sentas, abrigado da chuva ou à beira do rio, ou quando regressares, lembrar-te-ás de mim sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos. Mas eu penso em ti aqui tão perto de mim e fico tão desolada, tão triste. Sinto-me uma criança crescida, uma pagã inocente, sem flores no regaço, triste, sem sequer poder recordar-te.

               
Sentados à beira rio

                                 Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
                                 Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
                                 que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
                                      (Enlacemos as mãos.)

                                 Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
                                 passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
                                 vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
                                     mais longe que os deuses.

                                 Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
                                 Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
                                 Mais vale saber passar silenciosamente
                                      e sem desassossegos grandes.

                                  Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
                                  nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
                                  nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
                                      e sempre iria ter ao mar.

                                  Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
                                  se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
                                  mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
                                       ouvindo correr o rio e vendo-o.

                                  Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
                                  no colo, e que o seu perfume suavize o momento -
                                  este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
                                      pagãos inocentes da decadência.

                                   Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
                                   sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
                                   porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
                                        nem fomos mais do que crianças.

                                   E se antes do que eu levares o o bolo ao barqueiro sombrio,
                                   eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
                                   Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
                                        pagã triste e com flores no regaço.



                                   ('Vem sentar-te comigo Lídia' de Fernando Pessoa - Ricardo Reis)

 

2 comentários:

  1. Olá, Jeito Manso

    Quando vi, lá do meu painel, 'Vem sentar-te comigo Lídia, à beira-rio' soube logo que se tratava de Ricardo Reis.
    Então, aqui, deparei-me com um texto lindíssimo inspirado no poema e esta espécie de 'despique' entre os dois é uma delícia para mim...

    Vejamos:

    JM
    'Nem beijos, nem carícias - terias apenas a convergência de um olhar solidário na direcção deste rio que tanto amo, apenas as palavras de quem ama as palavras, terias apenas o meu sorriso.'

    RR
    'Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
    se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
    mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    ouvindo correr o rio e vendo-o.'

    Adoro este seu exercício.

    Bj

    Olinda

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  2. Olá, Olinda,

    Eu é que adorei a sua visita e as suas palavras.

    O poema é uma lindeza, é um poema que me toca.

    Ao lê-lo imagino um homem assim, sonhador, etéreo, tímido, incapaz de dar um passo concreto no temor de se desiludir.

    E imagino a mulher, Lídia, triste, à espera de uma palavra, de um sinal, querendo aproximar-se e nada acontecendo.

    Ambos sozinhos, ela à espera, ele sonhando por ela.

    Gosto de escrever assim, levada pela mão.

    E fico muito contente que goste de ler estas palavras involuntárias.

    Muito obrigada, Olinda.

    Um beijinho.

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