Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 novembro, 2011

Tivesse ainda tempo e entregava-te o coração

 
O tempo extinguiu-se para nós. Éramos tão felizes dentro do exíguo casulo que construímos para nós. Aí o tempo dilatava-se para nos acolher, para acolher os nossos sorrisos namorados, as nossas palavras generosas, os nossos sonhos desencantados. Era sempre dia lá no nosso acolhedor casulo, havia um sol que nos iluminava, que colocava a minha saia em contraluz, que dourava o meu cabelo, que dourava a tua pele. Falavas-me do mar, das tuas viagens no mar, das tuas noites no mar, o céu, as estrelas que vias e eu ouvia-te deliciada.

Agora que o nosso tempo acabou e eu já não te vejo, não ouço a tua voz recortar o desenho das estrelas, tudo me parece tão distante, parece que te deixei lá atrás no fim do mundo.

Agora a noite abateu-se sobre os nossos corpos e nós estamos sozinhos.

Mas, pudesse eu, entregar-te-ia ainda o meu coração.



[E, um pouco mais abaixo, depois do poema, ouça, por favor, Tatiana e Onegin - digo Renée Fleming e Dimitri Khvorostovsky, excelentes]

No Jardim do Ginjal, homem caminha sozinho, num dia chuvoso



                       A casa onde às vezes regresso é tão distante
                       da que deixei pela manhã
                       no
mundo
                       a água tomou o lugar de tudo
                       reúno baldes, estes vasos guardados
                       mas chove sem parar há muitos anos

                      Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
                      uma viagem se deu
                      entre as mãos e o furor
                      uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
                      sobre o corpo

                      Tivesse ainda tempo e entregava-te
                      o coração


('A casa onde às vezes regresso' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos')


 

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