O tempo extinguiu-se para nós. Éramos tão felizes dentro do exíguo casulo que construímos para nós. Aí o tempo dilatava-se para nos acolher, para acolher os nossos sorrisos namorados, as nossas palavras generosas, os nossos sonhos desencantados. Era sempre dia lá no nosso acolhedor casulo, havia um sol que nos iluminava, que colocava a minha saia em contraluz, que dourava o meu cabelo, que dourava a tua pele. Falavas-me do mar, das tuas viagens no mar, das tuas noites no mar, o céu, as estrelas que vias e eu ouvia-te deliciada.
Agora que o nosso tempo acabou e eu já não te vejo, não ouço a tua voz recortar o desenho das estrelas, tudo me parece tão distante, parece que te deixei lá atrás no fim do mundo.
Agora a noite abateu-se sobre os nossos corpos e nós estamos sozinhos.
Mas, pudesse eu, entregar-te-ia ainda o meu coração.
[E, um pouco mais abaixo, depois do poema, ouça, por favor, Tatiana e Onegin - digo Renée Fleming e Dimitri Khvorostovsky, excelentes]
No Jardim do Ginjal, homem caminha sozinho, num dia chuvoso |
A casa onde às vezes regresso é tão distante
da que deixei pela manhã
no mundo
a água tomou o lugar de tudo
reúno baldes, estes vasos guardados
mas chove sem parar há muitos anos
Durmo no mar, durmo ao lado do meu pai
uma viagem se deu
entre as mãos e o furor
uma viagem se deu: a noite abate-se fechada
sobre o corpo
Tivesse ainda tempo e entregava-te
o coração
('A casa onde às vezes regresso' de José Tolentino Mendonça in 'A noite abre meus olhos')
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