Passeio à beira deste rio que une as nossas duas margens e as palavras recolhem-se, ajoelhadas perante uma beleza que não sei descrever.
A aragem fria pica as águas que correm ágeis, roça-me o rosto, transporta as gaivotas que abrem as suas longas asas ou mergulham, doidas, e o meu olhar percorre os espaços - e não quero palavras, preciso de um silêncio que venere a lonjura, um silêncio que venha do início dos tempos.
Neste caminho que percorro, não estou só - ao meu lado voam todas as palavras que saem dos livros, que se soltam dos poemas, para aqui virem voar nestes mesmos grandes espaços em que voam as gaivotas de longas asas, em que voam as palavras que não sou capaz de dizer.
Gaivotas no Ginjal numa manhã fria, o Tejo de um azul vivíssimo, Lisboa já ali |
O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,
em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.
Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.
('Na biblioteca' de Manuel António Pina in 'Poesia, saudade da Prosa')
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