Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

19 outubro, 2011

De nós apenas fique a extrema glória de termos sido castos e corruptos!

 
Tantas, tantas vezes subi e desci esta rua, a mais bela e luminosa de todas as ruas de Lisboa. Entrei em cada uma das suas lojas, detive-me nas montras, maravilhei-me com os antiquários, com as louças de Sant'Ana, deliciei-me com o rio, tão lindo, tão lindo. Tantas vezes sozinha, tantas vezes de mão dada, abraçada.

Tantas vezes ali chegávamos, tantas vezes dali partimos.

Pisava esta rua e já me sentia apaixonada, olhava os barcos no rio e sentia-me enlevada. Era pecado? Nunca senti que o fosse. Embora tivessemos que nos recatar, sentia-me tão livre, tão livre.

Ainda hoje, nenhuma outra rua como esta me transporta para ambientes mágicos de amor e ternura. Esta rua transporta-me para longe, ando aqui nesta bela Rua do Alecrim (só o nome da rua já me agrada), nesta rua onde podemos ver o grande Eça, e sinto que não sou de cá, tudo me é permitido porque não sou de cá e, no entanto, aqui tenho tanto orgulho de ser portuguesa.

Vamos outra vez descer a rua, amor? Vamos?

Quando aqui passo, meu amor, transporto comigo os fios de aurora que recolhi no rio. Com eles enfeitarei os teus sonhos durante a noite. Vem amor, vem ver o rio.


[A seguir, depois do poema, desça comigo e vamos até àquela velha viela ali no Ginjal em que Maria Ana Bobone enche a beira do rio com a sua belíssima voz]


Casal sobe a Rua do Alecrim, o Tejo já ali



De nós apenas fique a extrema glória
de termos sido castos e corruptos!
E que se volva eterna a transitória
e luminosa cor destes minutos!

Que o nosso amor seja maior que nós,
secreto e audacioso como um rio!
- Que tenha, como nós, a nossa voz...
Mas que o seu timbre seja menos frio.


('Inscrição sobre o rio' de David Mourão-Ferreira in 'A arte poética')

   

2 comentários:

  1. belíssimo poema ou parte de poema, o conteudo, as contradições ou oposições, as consonancias. Era de facto trabalhador da poesia, sabendo combinar forma e conteudo.
    Deu-me prazer voltar a ler dmf.

    Ps. todo o prolongamento dessa rua de que fala, subindo até s pedro de alcantara, depois principe real e escola politecnica até ao rato forma um belisimo conjunto, felizmente não estragado

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  2. Caro Patrício,

    Gosto imenso de David Mourão Ferreira, e é o que diz, burilava a poesia, cerzia as palavras.

    Esta zona de Lisboa é das minhas preferidas. Apesar de haver sempre algumas obras, bocados de passeios em obras, prédios de fachadas cobertas em processo de restauro, há ali uma vivência que vem de trás e que se reinventa. Muito turismo, muita gente nova, música, é um gosto. E o Tejo muito presente.

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