Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

02 agosto, 2011

Entrego-te as palavras mais brandas que entre os meus dedos construí

De pequenas coisas fiz uma casa:

a fruta, as fotografias, os quadros, os livros, a luz,

as palavras, que, a dois, fomos dispondo nos recantos, na mesa, na cama, na nossa vida,

as pequenas histórias que foram acontecendo e que, entretecidas, formam a nossa história, a nossa comum memória.

Meu amor.

Há pouco, à tardinha, sobre o Tejo, vendo Lisboa

Entrego-te as palavras mais brandas
que entre os meus dedos construí
para alimentar de ti os recantos da casa
invadindo o coração da noite

entrego-te as palavras com a redonda luz
das maçãs sobre a mesa      e o rumor da água
rasgando o caminho da paixão
em horas que já não conseguimos      sem ajuda
recordar
mas que habitam a mais frágil memória de nós próprios

palavras jorrando dos meus olhos
invadindo-te o sono     e tropeçando
nas esquinas das frases que decoro
ao longo dos veios da tua pele

e a verdade é que nunca terei outra história
para além da que nos aconteceu
e que ficamos à espera de um dia perceber melhor
porque nunca ninguém se prepara convenientemente
para a chegada do amor
e ele é sempre um convidado estranho
sentado em silêncio na penumbra da sala
olhando os quadros     o chão      o tecto

como um velho parente da província
com medo de dizer o que não deve


(Poema (10) de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água')

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