Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 julho, 2011

Enquanto um se esvai e outro se vem ninguém é de ninguém, ó solidão

Quando o mar se retira o que fica é apenas uma lâmina de água onde se reflectem as árvores, o céu, a vida.

Já não é o mar nem a vida, é apenas uma imagem reflectida, efémera. Logo, o sol secará esta fina lâmina de água e, dela, desaparecerão os reflexos das árvores, do céu, da vida.

Eu apenas quero a vida de verdade - se é que se consegue dizer, com precisão, o que é a vida de verdade - não a vida reflectida nas águas paradas porque o que se vê ali pode ser de grande beleza mas é uma vida virtual, enganosa, é a solidão absoluta, é a vida diluída, esvaída.

Por isso, olho a vida de frente, sem solidão, sem pudor. E sei, sembre soube, sempre saberei, que ninguém é de ninguém - e daí vem grande parte da minha força.

No Ginjal, perto do jardim, lâmina de água no chão

Em cada corpo a corpo se procura
o espírito das águas onde a alma
por vezes paira sobre a face obscura
e só depois do fim encontra a calma

essa calma tristíssima de quem
volta a si de repente e sabe então
que enquanto um se esvai e outro se vem
ninguém é de ninguém ó solidão.

Suprema solidão que vem depois
de findo o corpo a corpo sobre a cama
quando nunca se é um e sempre dois


e só um cigarro triste ainda é chama
e um último pudor puxa os lençóis
e a cinza cobre o amor que já não ama.
 
 
('Em cada corpo', de Manuel Alegre in Sete sonetos e um Quarto, belo livro com ilustrações de João Cutileiro)

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