Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

26 março, 2016

Solitário no meu pequeno barco, canto no meio do mar da felicidade




Estás do outro lado do mundo, invisível, tão longe das minhas mãos cegas. Se fecho os olhos, vejo-te entre sombras, vagueando entre palavras, adivinhando músicas longínquas, tecendo fios perfeitos de sedas suavemente coloridas, frases límpidas, tão límpidas. Outras vezes, o teu olhar perde-se entre verdes, azuis, deleita-se com os caprichos das flores e, então, vejo-te guardando tesouros, com a minúcia dos antigos, cada coisa em seu cuidado compartimento, isto para um dia de luz, aquilo para um dia de névoa, isto para te contar um dia, aquilo para esconder de todos. Com a delicadeza dos generosos, afagas memórias, sonhos, sorrisos de um carinho tão distante.

Abro a janela e, na noite, adivinho as estrelas adormecidas, as nuvens em sonos aquietados, as tuas mãos pensando naquela que o teu coração chama, paradas, expectantes. São brancas e pensativas as tuas mãos. Apenas a respiração, agora, te prende à vida que os outros conhecem. O resto, todo tu, está nos esconderijos onde a tua vida se guardou.

Mas deixa que eu, que não te conheço, te diga: não penses com saudade naquela que o teu coração chama. Não penses. 

Eu conto-te. Ela vive entre o brilho das águas, sobre os ramos floridos das árvores, voa sem destino certo, perde-se entre os caminhos frescos de bosques que mais ninguém conhece, ela é outra e ninguém sabe quem é, ela é um reflexo, ninguém, uma mulher inventada. 

Respira de olhos abertos, respira. E olha as tuas mãos, levanta-as, deixa-as voar, abre a janela, sacode as asas, sai e voa. Procura um barco, deixa-te deslizar, vai com ele, olha os mil sóis, deseja a tua felicidade, encosta o ouvido à frescura da noite, escuta como ela te pede que sorrias. Sorri. Agora. Sorri. 

Estou a ver-te. Ainda não estás a sorrir. Sorri. Sorri para mim.

Assim está melhor. Gosto de te ver a sorrir. É bonito o teu sorriso.


O amado está dentro de ti e de mim
a árvore está escondida dentro da semente
Todos lutam    Ninguém chegou muito longe
Abandona a tua arrogância    Olha à tua volta

O céu azul prolonga-se pelo infinito
A diária sensação de fracasso esbate-se
Um milhão de sóis começa a brilhar
enquanto piso com firmeza este mundo

Ouço o som de uma campainha que ninguém agita
chove embora não haja nuvens no céu
Fluem rios de luz

Solitário no meu pequeno barco
canto
no meio do mar da felicidade

[in 'O nome daquele que não tem nome' de Kabir numa versão de Jorge Sousa Braga]


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A música é  Look at the world de John Rutter numa interpretação de The Cambridge Singers 

As fotografias foram feitas no Ginjal
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09 março, 2016

A oriente do teu sangue



Como dizer, anjo selvagem, que te quero longe de mim, que o incêndio que lavra no teu peito me enche de medo? 

Como dizer, anjo de negras asas, que a tua língua de homem perdido traça labirintos loucos na minha noite?

Como dizer, anjo terrível, que o sangue perverso que corre nas tuas veias me adoece, me envenena?
E como dizer que a noite macia que me envolve não basta para me proteger do teu canto tão acre, tão, tão perigoso?
E como dizer, anjo louco, que a tua insolência solta disparos de fogo que ateiam a minha intranquilidade?
Ah, como dizer, anjo sem nome, que mergulho no rio, me deixo levar pela aragem doce e azul, me afasto da costa segura, tudo, tudo, apenas para me proteger de ti, madrugador intranquilo que te confundes com as palavras loucas que atiras pelos ares?


como dizer aos meus olhos que se afastem
do incêndio que lavra a oriente do teu sangue
rasgando a minha fonte

e me protejam nesta imperfeita madrugada
em que as línguas dos homens e dos anjos
se confundem

[Poema 2 de 'Pelas mãos e pelos olhos eu juro' de Alice Vieira in 'Dois corpos tombando na água]