Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

25 fevereiro, 2016

Uma palavra, um grito, um deslizar manso sobre as águas





Há pouco, talvez umas oito da noite, olhei o céu e vi uma despudorada lua nua, descaradamente amarela. Iluminava o rio e ele, rendido, todo se desfazia em reflexos.

Depois distraí-me. Por vezes acontece-me isto, deixo que pequenas coisas me façam esquecer o que é verdadeiramente importante. 

Agora fui espreitar. Já não a via. Entristeci-me, pensei que a tinha perdido. Olhei em volta. Finalmente vi um rasto de luz incolor. Era ela, lá em cima, já de branco vestida, o rio de negro. Zangaram-se, pensei. Mas entre os amantes que muito se querem, os pequenos nadas são esquecidos e a ausência dilui-se, perdoa-se. Pensei: amanhã já estão outra vez na mesma, trocando sinais de amor, sorrisos, brilhos que só eles parecem ver. Tive vontade de os abraçar com o meu olhar e então pensei: como se abraça com o olhar? Fui buscar a máquina, foquei, olhei-a de perto. Fotografei-a. Branca, manchas, cinzas, crateras. Um luar pleno, carregado de notas de música e de poemas e, no entanto, o que há vem da cinza, vem do que talvez um dia tenha sido verde, azul, agora só pó.

Parece que à sua volta se ouve uma estranha música, acordes soltos, prolongados, vindo da origem dos tempos. E quem lá pousa, quase voa. E eu não sei se uma pessoa se pode perder no espaço, por sobre a lua, e ficar infinitamente solto, a voar sem destino, ouvindo indefinidos acordes, iluminado por uma luz transparente, macia como um leite muito doce.

Não sei o que pensar de tudo isto, nem do que vejo, nem do que sei, nem do que penso. E acho que não faz mal porque me parece que tudo existe para não ser compreendido. E penso que tenho que aprender a ver, a sentir, a aceitar, a gostar -- mesmo sem compreender.

Agora eu estou aqui na minha janela, iluminada pela noite e por luar reservado e branco, e não vejo nuvens, se as há estão envoltas em escuridão, e se prenunciam tempestades eu não sei, e se prenunciam sombras atravessando o coração dos que vivem na escuridão, eles já não estranham. Por isso, é como se não houvesse nuvens. A noite cega-me, cega-nos.

Lá em baixo, nos bares da beira do rio, as mulheres decotadas e ruidosas talvez estejam encostadas umas às outras ou dobradas sobre a mesa de homens disponíveis. Não devem pensar nas águas escuras que correm em silêncio, encorajadas pelos mistérios que o céu esconde. Quando amanhecer, devem sair em silêncio, cansadas, esquecidas da lua, e eu acredito que elas ainda não saibam que, nas noites de luar, o rio se deita enebriado de amor, ignorando os gemidos que elas soltam quando fingem o prazer, e ouve apenas o doce murmúrio que desce da sua amada longínqua, sons muito antigos, acordes luminosos como a alvura enamorada daquela que, de longe, o olha com saudade. Mas o rio não se importa que elas não saibam, que ninguém saiba: ele gosta mais assim, de a ter, à lua, só para si, escondida em si, vivendo em si, o seu brilho deslizando mansamente na corrente dos seus dias. Para sempre. Para sempre.



Movemo-nos entre as noites e as dunas que nos cercam,
espectros de outro tempo e de outra vida;
mas aquelas mulheres juntaram-se a um canto, silenciosas,
pois esperam de nós alguma coisa
que não sabemos o que é:
uma palavra, um grito, um deslizar manso
sobre as águas, ou o mero esplendor do nosso fim
iluminado pelo mais solene dos luares?
As nuvens, sim, as indiferentes nuvens
anunciam um cruel fulgor,
que nós a tempo não saberemos ver

['Ao luar' (Manet, Luar sobre o porto de Bboulogne) de Luís Filipe Castro Mendes in 'Outro Ulisses regressa a casa']

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(Fotografias feitas agora mesmo, enquanto ouvia Catrin Finch e Seckou Keita )

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