Escuta homem que vens. Não sabes, porque não podes saber, porque eu não te disse, porque nunca te direi, mas sabe, homem que vens, que tenho ainda nas minhas mãos o cheiro que inventei para as tuas, e nos meus olhos o teu olhar que me quer olhar com infinita doçura e nos meus lábios o sorriso que um dia sonhaste ver e o sabor da tua pele que não saboreei.
Escondo-me de ti, de mim, dos sonhos, das asas, da luz, dos ventos, dos segredos, de tudo. Escondo-me, enrolo-me, encolho-me dos recantos, calo-me, esqueço-me. Num buraco escuro, no recesso da raiz de uma árvore esquecida, num desvão de uma escada clandestina, na intimidade das folhas de um livro que tacteaste, por aí vagueio eu, bicho com medo, invisível, quase perigoso. Não me encontrarás. Mesmo que me encontres, não serei eu.
Sou uma mulher selvagem, homem que vens, sou uma mulher sem piedade, sem remorsos, uma mulher danada que esquece quem a ama, que ignora lamentos e finge não ver as palavras que desenhas para que os meus olhos se lembrem de ti, uma mulher que apaga os rasgos que lhe abriste na pele, no coração.
Os lençóis conservarão talvez as formas que nunca lá deixaste e, se eu encostar o ouvido ao fundo do teu coração que sinto bater aqui junto ao meu, sentirei a tua respiração gentil e poderia até adivinhar como é a pequena morte que conhecerias se visitasses o meu corpo. Sinto-te aí, sinto-te, ouço a tua respiração, vejo os teus olhos, sinto-te, sinto-te. A tua pele, o teu corpo - sinto, sinto. O calor do teu corpo, o cheiro do teu hálito. Aqui, junto a mim. Sinto.
Mas eu sou uma mulher impiedosa, danada, uma mulher que vive no fundo do mar e desconhece a brandura das estepes, que desconhece os concâvos do macio das tuas mãos, a curva branda do teu ombro que me aguarda. Desconheço-te, ignoro-te, tapo a recordação de ti. Faço-me de mil silêncios, fundo-me com as paredes, refugio-me onde não me vejas, não me lembres, não me queiras. E esqueço-te, ignoro-te. Vives no fundo mais esquecido de mim. Os meus uivos não chegam até ao lugar escuro onde te escondi.
Podes soltar palavras no ar, semear pássaros pelos ventos, trepar nu aos telhados, descer ao fundo do mar, amar-me com a carne, sem virtude, ser gato sem dono, cardume de peixes, raiz ou flor. Podes. Mas de mim, mulher impiedosa, mulher selvagem, de braços vegetais como ramos largos imersos nas águas, de asas aflitas como remos querendo fazer-se ao mar, de mim, mulher sem nome, nada poderás ter.
Talvez apenas cânticos, lamentos, murmúrios, gemidos, soluços, lágrimas, risos, gritos, abraços infinitos, beijos inventados, palavras perfumadas como mel, coisas que de nada valem, que se perdem no ar, no tempo, nos silêncios tristes que habitam o meu peito.
Escuta homem que vens. Não queiras esta mulher selvagem.
Os lençóis conservaram
as formas dos cardumes dizem
que se encostares o ouvido ao fundo
terás a cadência vegetal das mãos.
Que uma estepe se abre
côncava
de artes lentas nesse lugar
de morte certa.
Escuta homem que vens -
os remos à solta fazem parte
da biologia das águas.
['Cântico das abundâncias' de Catarina Nunes de Almeida in Bailias]
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Chung Kyung-Wha interpreta o Concerto para Violino (Mov.2) de Antonín Dvořák
As fotografias foram feitas no Ginjal durante o último fim de semana
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