Ginjal e Lisboa

Ginjal e Lisboa

04 junho, 2013

acautela a tua dor que se não torne académica


Espera um pouco, um pouco, deixa-me dizer-te, assim devagar, que a vida é pouca, pouca, para o tanto que tenho para te dizer. 

Escrevo, rescrevo, apago, escrevo, deleto - olha como eu já falo - e escrevo de novo, mil vezes, mil, mil, rasuro, escrevo, mil palavras tentadas e nenhuma tão perfeita como a que procuro.

O tempo esvai-se, o rio corre, as palavras que te digo voam. Um sopro, um fugaz instante. Breve é a vida. Tão pouco o tempo, tão pouco. 

Espera, não feches os olhos, olha-me, guarda-me dentro de ti antes que eu me vá.

Olhas-me perplexa, calada, tantas vezes já me ouviste nestas demandas, nestas lamúrias, cansada de me dizeres que pare com isto, que viva, que viva o tempo que é pouco.

Mas não posso calar-me, não tarda as minhas palavras estarão mortas. Que terei para te oferecer, então? 

Olhas para o lado, já não me ouves.

Insisto: não olhes a luz que não é verdadeira, não olhes o rio que é efémero. Olha para mim, olha, ajuda-me, procura comigo a palavra mais limpa. Espera, espera, ajuda-me, tão pouco o tempo, tão pouco.

Então olhas-me, séria, e dizes, Não espero coisa nenhuma! Estou farta, farta, farta! Tanta literatice já enjoa. Não voltes a dirigir-me a palavra enquanto não tiveres inquietações a sério. Ou quando tiveres uma dor de cabeça que se trate com uma aspirina. E esquece essas dores académicas da treta que só servem para me maçar. Bolas para tanta conversa! Deixa-me em paz, quero simplesmente olhar o rio. Chato do caraças!



[(Eu hoje não me recomendo... ) Adiante. Abaixo do casal muito bonito, bonitos os dois, que conversam sobre o Tejo, um poema de Herberto Helder. A seguir, mais uma música que me deixa perplexa, mais uma composição de Luciano Berio]



Casal à beira Tejo, Lisboa, a bela, do outro lado, um veleiro negro deslizando com o vento



                                          vida aguda atenta a tudo
                                          e contudo para acabar mais depressa no escuro
                                          escrevo rescrevo
                                          e enfim reluzo e desmorro
                                          (finjo pensá-lo)
                                          um pouco um pouco

                                          acautela a tua dor que se não torne académica



                                          ['vida aguda atenta a tudo' de Herberto Helder in Servidões]

*

Percorri 
despido de mim
os teus poemas.
Enrolaram-se-me no olhar
as tuas palavras.
Feri-me
no fragor surdo
dos teus versos.
Exausto 
não tive mais forças
para buscar
um sentido qualquer!


['Blasfémia! de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]

4 comentários:

  1. Cara UJM,
    num rosário de lamentos e palavras desconexas quantas vezes digo e desdigo que o tempo já não existe. Na sua essência emana em cada gesto mimetizado, mas não existe. Porquê? Todos dizem: “não tenho tempo!...” Ora se ninguém tem tempo, nem o tempo, onde existirá ele? Creio que apenas à distância infinita do fogo de um Prometeu acorrentado.
    Tal como o fogo o tempo não se gasta, apenas nos consome.

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    1. Olá dbo,

      Pois é! e eu que me queixo também tanto da falta de tempo, especialmente durante a noite... Gostava que a noite durasse mais umas duas horas para eu escrever, escrever, e depois ainda conseguir uma boa noite de sono.

      Mas, enfim, isto é de querer fazer tudo e não querer abrir mão do que gosto.

      E os fins de semana são tão curtinhos.

      E as horas que desperdiço no trânsito...

      É uma vida disparatada, lá isso é.

      Mas pode ser que me saia o euromilhões para eu poder deixar de trabalhar e poder usufruir de todos os meus gostos.

      Muito obrigada e uma boa noite!

      PS: Já li o seu comentário lá no UJM (não vou responder lá porque já não consigo ter tempo - lá está a escassez de tempo...) mas concordo com o que diz e lastimo a escassez terrível de tudo, especialmente quando afecta bens tão preciosos como a saúde e afecta classes tão nobres como as que se dedicam aos cuidados de saúde ou ao ensino.

      Este não é o mundo em que deveríamos viver. Temos que correr com a má raça que anda a estragar este mundo, é o que é.

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  2. JOAQUIM CASTILHO04 junho, 2013

    Olá UJM!

    BLASFÉMIA!

    Percorri
    despido de mim
    os teus poemas.
    Enrolaram-se-me no olhar
    as tuas palavras.
    Feri-me
    no fragor surdo
    dos teus versos.
    Exausto
    não tive mais forças
    para buscar
    um sentido qualquer!

    um abraço

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá Poeta Joaquim Castilho!

      Que bom tê-lo de volta, que falta já sentia dos seus poemas. A sua blasfémia já lá está em cima, no sítio devido.

      Muito obrigada! E volte sempre que as gaivotas e os gatos da beira do rio não têm feito senão perguntar por si.

      Um abraço!



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