A câmara é discreta. Fecha os olhos quando, na sua frente, encontra corpos que se desejam. Olhamos depois as imagens e não encontramos os corpos que ali estavam, juntos, colados, respirando a respiração um do outro, o calor de um juntando-se ao calor do outro.
Ou, então, é a pele dos corpos que muito se desejam que se mistura com a pele da terra. Talvez as veias mergulhem na terra, como se buscando alimento. Ou apenas procurando frescura, algo que apague o fogo que incendeia os corações.
Ou talvez busquem o rio, ah o rio, tanto que os corpos que se desejam gostam do rio que passa correndo devagar. O silêncio branco e fresco do rio. As águas claras do rio. As águas que lavam os corpos toldados pelo pecado quente e bom.
Não sei.
Apenas sei que estávamos lá. Eu, tu.
Apenas sei que estávamos lá. Eu, tu.
Lembro-me bem de ti nesse dia, cabelos esvoaçando, olhos de menina, mãos doces. Na nossa inocência não sabíamos que ao rio das manhãs não voltaríamos.
Hoje estou aqui recordando esses momentos que a câmara não reteve, apenas reteve as roupas que despimos, envoltos em sombra, sedentos.
Hoje estou aqui - mas tu já não estás.
Ou estás?
Prefiro pensar que sim. Engano-me, talvez, mas não faz mal. Prefiro assim. Deixa-me sonhar.
O pó em que transformaste voará por ali, sobre a copa suave das árvores, sobre a terra que, antes, nos acolhia, ou sobre as águas que correm em silêncio - e depois, muito transparente e suave, vem pousar, devagarinho, sobre a minha mão que se abre em concha para te acolher, minha eterna menina de longos cabelos e sorriso puro como uma manhã.
Sonho, como vês. Mas não faz mal: volta sempre, minha menina, volta sempre para dentro dos meus sonhos.
[Abaixo do Jardinzinho do Ginjal, poderemos ler mais um poema de Gastão Cruz e, quando leio estes belos poemas de Gastão Cruz, não consigo deixar de pensar em Fiama, menina de longos cabelos. A seguir, para que nos animemos, há um som com uma musicalidade também muito pura: é de novo a música do Mali, desta vez com Ali Farka Toure]
Lisboa ao fundo, o Tejo passando - no jardinzinho do Ginjal |
Existiam então esses momentos
que a câmara
do tempo não retinha? Ao rio das
manhãs não voltaríamos?
São as coisas concretas as mais claras
o suor o quarto a roupa abandonada.
[Poema 22 de Gastão Cruz in Fogo]
/\
Inesperado
chegou o vazio
tristeza que dói
um murmúrio apenas
lembrança
de um tempo apagado
memória sem nome
sonho concreto
barco que foi
de nenhum rio.
[Poema de Joaquim Castilho num comentário aqui abaixo]
Olá UJM!
ResponderEliminarInesperado
chegou o vazio
tristeza que dói
um murmúrio apenas
lembrança
de um tempo apagado
memória sem nome
sonho concreto
barco que foi
de nenhum rio.
um abraço
Joaquim,
ResponderEliminarTão bonito, tão em sintonia com o poema de Gastão Cruz, com as palavras que escrevi. Tão bonito.
Já coloquei lá em cima. Muito obrigada.